terça-feira, 20 de maio de 2008

Atualidades: Tibet, Kosovo e as velhas ilusões de sempre

Nas últimas semanas, a imprensa internacional tem dado destaque à luta pela independência de duas nações que, embora tão distantes e tão diferentes entre si, guardam dentro de suas problemáticas específicas a chave para o entendimento dos rumos que o mundo segue atualmente. Para tanto, nunca é demais relembrar os caminhos e as razões que levaram nações tão distantes quanto Kosovo e Tibet a ganharem destaque em noticiários do mundo inteiro.

Localizado no centro da península balcânica, o território do Kossovo esteve ocupado por mais de meio milênio pelo antigo Império Turco Otomano. Anexado em 1912 pelo recém formado Reino da Iugoslávia, a população kossovar de maioria albanesa continuou sofrendo sob o domínio estrangeiro, dessa vez por parte dos sérvios, que então controlavam com mão de ferro a monarquia iugoslava. Tal situação só pôde se alterar após a Segunda Guerra Mundial, quando os comunistas chegaram ao poder na Iugoslávia. Guiado pelos princípios internacionalistas de coexistência pacífica entre os povos, o novo governo socialista concedeu ampla autonomia ao território, que experimentou nas décadas seguintes um grande período de paz e prosperidade. Porém, com a crise do socialismo na Europa em fins dos anos 80, o ódio nacionalista reacendeu de forma explosiva na região, e o separatismo kossovar enfim ganhou vigor. Em 1999, alegando que as forças sérvias de Slobodan Milosevic vinham levando a cabo uma política sistemática de “limpeza étnica” contra a população albanesa local, tropas da OTAN lideradas pelos EUA bombardearam Belgrado, forçando a saída dos sérvios do Kosovo, que posteriormente passou a ser ocupado por forças de paz da ONU. Por fim, no início de 2008, o parlamento kossovar declarou sua independência, imediatamente reconhecida pelos EUA e seus aliados.

Já a situação do Tibete, por sua vez, encontra-se em um estado ainda mais dramático. Localizado no extremo oeste da China, junto à cadeia montanhosa do Himalaia, o Tibet declarou sua independência em 1912, sendo novamente invadido e anexado pela China em 1950. No exílio desde 1959, o Dalai Lama (título concedido ao chefe político e religioso do Tibet) organizou sob sua liderança a comunidade de tibetanos exilados, obtendo tamanho respaldo político para o projeto separatista tibetano que, nas últimas décadas, tornou-se "moda" no Ocidente (principalmente nos EUA) defender a causa tibetana frente à dominação chinesa. A questão do Tibete voltou com força aos noticiários nas últimas semanas, quando em resposta à prisão de monges tibetanos pelas autoridades chinesas, uma série de violentas revoltas populares eclodiram na capital Lhasa e em outras cidades da província, levando a uma brutal reação do governo chinês. Pressionado pela mídia e por governos de todo o Ocidente (em especial os EUA), o regime de Pequim tenta a todo custo abafar tão embaraçosa situação, que ameaça seriamente a imagem do país somente alguns meses antes da realização de sua Olimpíada. Até mesmo a cantora islandesa Björk, em um recente show realizado em Xangai, se manifestou a favor da independência tibetana, provocando protestos de autoridades chinesas e promessas de mais censura a artistas estrangeiros.

Tibet e Kossovo, duas regiões tão distantes e tão distintas, não obstante as enormes diferenças de seus desenvolvimentos históricos e de suas problemáticas presentes, guardam importantes semelhanças por detrás de suas aspirações por independência, que é preciso reconhecer, são inegavelmente legítimas, dadas as enormes peculiaridades étnicas, culturais e lingüísticas próprias dessas nações. A situação de ambas as regiões é amplamente divulgada pela mídia ocidental, e seus antagonistas na luta por independência, China e Sérvia, são freqüentemente execrados pela "opinião pública" como "opressores cruéis e ditatoriais", de forma que o separatismo dessas duas nações ganha contornos de "luta do bem contra o mal". Completando essa dicotomia, o governo dos Estados Unidos e seus aliados mais próximos, eternos defensores da "democracia e da liberdade", concedem apoio incondicional a tibetanos e kossovares, atiçando ainda mais a chama separatista destes povos. Isso é o que a grande mídia nacional e internacional nos tem levado a saber nas últimas semanas.

Porém, muito além do que agências de notícias como CNN e Reuters estão dispostas a nos dizer, Kosovo e Tibet guardam entre si outras semelhanças um tanto inquietantes e reveladoras. Pois em momentos como esse, em que tanto líderes do Ocidente quanto a grande mídia agitam de forma tão escancarada a bandeira do separatismo, uma pergunta crucial passa longe dos noticiários: onde estão os EUA e a União Européia quando se é preciso defender a independência de tantos outros povos igualmente oprimidos pelo mundo afora? Onde fica o Ocidente, com seus governos e sua mídia "oficial", quando se é preciso denunciar a situação da Palestina, do País Basco, de Porto Rico, da Irlanda do Norte ou do Curdistão, para ficar apenas em alguns exemplos? Porque artistas como a cantora Björk e o ator Richard Gere, tão prestativos para denunciar a situação do povo tibetano, jamais falam por exemplo sobre o povo do Saara Ocidental, que desde a sua emancipação da Espanha em 1975 padece sob uma cruel dominação militar e econômica perpetrada pelo Marrocos? Porque o Dalai Lama, que tanto gosta de denunciar um suposto "genocídio cultural" promovido pelas autoridades chinesas no Tibet, nada fala sobre a destruição sistemática de valores e culturas perpetrada pela globalização neoliberal nos quatro cantos do mundo, esse sim um autêntico e inegável genocídio cultural? E porque o outro lado dos conflitos do Kosovo e do Tibete não é mostrado? Pouco se falou dos chineses espancados e saqueados pelos tibetanos em Lhasa, tampouco das centenas de sérvios assassinados em 1999 pelos bombardeios da OTAN (que ao contrário do que foi dito, dirigiu-se quase que exclusivamente contra alvos civis) ou pelas guerrilhas albanesas (estas também empenhadas em realizar a sua sanguinária versão de “limpeza étnica”). Nem sequer falou-se dos mais de 200.000 sérvios, romenos e turcos kossovares obrigados pela maioria albanesa a abandonar seus lares para se tornarem “refugiados de guerra”!

Mas qual o porquê dessa política de dois-pesos-duas-medidas levada a cabo pelo Ocidente? Porque a "civilização" vê como legítima a luta emancipatória de apenas dois povos, e não de todos os outros? Aí é que entram as tão inquietantes (e censuradas) semelhanças entre kossovares e tibetanos. Ambos buscam tornarem-se independentes dos dois últimos grandes blocos de contestação política à ordem global encabeçada pelos EUA: a Rússia (que tem como aliada histórica a Sérvia, país que também representa um dos últimos focos de resistência à expansão do neoliberalismo na Europa) e a China. Essa é a explicação. Longe de ser movida por razões humanitárias, a política exterior dos EUA e de seus aliados vê as lutas de tibetanos e kossovares albaneses apenas como mais uma oportunidade de enfraquecer seus grandes rivais e fortalecer o domínio militar, econômico e político do Império estadunidense sobre o planeta, custe o que custar. Isso explica por que, em 1999, tantas mentiras sobre um suposto "genocídio" albanês foram plantadas pela mídia ocidental como justificativa para a guerra contra a Sérvia, mentiras estas devidamente desmascaradas após a ocupação do Kosovo pelas forças da ONU (lembrando bastante a falácia de Bush Júnior sobre a suposta existência de "armas de destruição em massa" nas mãos de Saddam Hussein). O Iraque, aliás, a exemplo de outros povos oprimidos pelo Império e seus aliados, ilustra bem o destino que terão as duas novas nações que aos poucos vão sendo “autorizadas” a existir pelo Imperialismo: tal qual a nação árabe, os recursos naturais do Kosovo tiveram sua exploração “concedida” pela ONU a grandes transnacionais estrangeiras. Tão logo se oficialize a independência de mais este pequeno território dos Bálcãs, onde por herança dos velhos tempos de comunismo ainda há predominância de empresas estatais e cooperativas, o próximo passo a seguir, bem conhecido mundo afora, certamente consistirá em “liberalizar” a economia local (ou seja, mais privatizações e maior precarização do trabalho). Já o Tibet, uma vez conquistando sua “independência”, deixaria de estar sob o guarda chuva da altamente regulada e internamente protegida economia mista chinesa, que tem levado a província a experimentar um progresso econômico acelerado nos últimos anos. Separada economicamente da China, a província se tornaria uma presa fácil para o capital privado transnacional e para as velhas e corruptas elites político-religiosas do antigo Tibet capitalista que, lançadas ao exílio pela Revolução, estão ansiosas por reaver suas antigas posses e privilégios.

O fato é que, ao sistema capitalista internacional liderado pelos Estados Unidos, nunca interessou conceder mais que uma independência e uma liberdade meramente formais a quaisquer povos do planeta. Desde a expulsão dos espanhóis da América Latina no século XIX, passando pela descolonização da África e pela independência de um sem-número de nações no Leste Europeu após o fim da URSS e chegando até os dias atuais, a única coisa que sempre interessou ao capital foi arrancar de seus rivais (sejam eles rivais políticos ou econômicos) tantas terras quanto possível, visando impor às nações recém atraídas à sua esfera de influência um novo tipo de dominação econômica e cultural que na prática pouco difere de uma versão moderna de colonização. Tal processo tem se aprofundado ainda mais nas últimas décadas, com a expansão da globalização e do neoliberalismo coincidindo com o surgimento de um sem número de micro-nações, que à luz da razão não deveriam sequer existir. Um exemplo claro dessa afirmação é a pequena Moldávia, uma ex-república soviética de etnia romena que, após o esfacelamento da URSS, proclamou sua independência ao invés de tornar a fazer parte da Romênia. No fim dos anos 90, o país enfrentou uma inusitada crise política, quando simplesmente nenhum candidato se apresentou para concorrer às eleições presidenciais daquele “país”! A situação do Kosovo não deixa de ser análoga: afinal, se a etnia majoritária do território é composta por albaneses, porque ninguém pensou em reintegrar esta ex-província iugoslava à Albânia?

Longe de representar uma mera coincidência, a rápida pulverização política de regiões inteiras do globo, ocorrida nas últimas décadas, na verdade possui uma razão de ser bastante clara: dividir para conquistar. Eis o lema que o Imperialismo logrou impor ao mundo de forma tão eficiente no fim do século passado e início deste, manipulando antigas intolerâncias e ódios nacionalistas da forma mais oportunista possível a fim de alcançar seus nada nobres objetivos. E aos demais povos oprimidos do mundo, já devidamente atrelados à ordem capitalista mundial (novamente citando, palestinos, bascos, curdos, porto-riquenhos, irlandeses e tantos outros), restam as alcunhas de "terroristas", tão convenientes em tempos de "luta contra o terror", e a certeza de que à atual ordem global pouco importam os seus sofrimentos. E às novas nações que estão por nascer, se seu nacionalismo cego pela sede de liberdade é limitado demais para reinvidicar mais do que uma bandeira e um hino, de tão incapaz de enxergar para onde a reedição de velhas ilusões históricas os vem conduzido, fica ao menos um consolo: ao peixe que vive no aquário, só é possível ser feliz se ele ignorar a existência do oceano.

2 comentários:

Anônimo disse...

Se os kossovares são de origem albanesa e vivem em área contígua à Albânia, que é que os impede de irem viver nesse país, ao invés de sofrerem e causarem tantos problemas a outros países, vizinhos ou não??? Que direitos têm os EUA e seus parceiros ou correligionários a ver com isso? Não, não digam que o Kôssovo tem petróleo até umas horas...

Anônimo disse...

Agora... e se houvesse tanto petróleo, ou outras riquezas, por que os EUA e seus correligionários ou parceiros TERIAM DE se apossar da região??? Ora, já não se conhece a(s) história(s) e razões do mundo?...