Quem passeia pelas vizinhanças de Vyšehrad, na zona sul de Praga, capital da República Tcheca, irá fatalmente se deparar com a espantosa visão da ponte de Nuselský. Construída nos anos 70 pelo antigo regime socialista da então Tchecoslováquia, a hoje principal artéria de ligação do trânsito do sul ao centro da capital tcheca é um colosso de concreto de quase 500 metros de comprimento e mais de quarenta de altura, tão grande que por dentro de si passam duas vias da linha C do metrô de Praga. Obra de vital importância para o transporte na capital tcheca e até mesmo cartão postal da cidade, Nuselský no entanto aparece com outros olhos para quem vive debaixo dela. Pois o que há de mais inacreditável sobre a titânica ponte é que, sob o imenso vão desta, no vale de Nusle, há todo um bairro repleto de prédios residenciais, onde vivem pessoas que foram simplesmente ignoradas pelos que decidiram construir o gigante. Vista das ruas e prédios escondidos debaixo de Nuselský, a ponte adquire uma onipresença faraônica, capaz de encolher quase à insignificância a vida das pessoas e transmitir a qualquer visitante a incômoda sensação de ter sido transportado de súbito a uma espécie de futuro distópico e decadente. Sob esses diferentes pontos de vista, a visão dos que se beneficiam da ponte e dos que são obrigados a conviver no vale sob ela, Nuselský torna-se um símbolo bastante esclarecedor do que foi o socialismo no leste europeu: muito utilitarista, mas também bruto demais; bastante importante sob os principais aspectos necessários à vida das pessoas, mas ao mesmo tempo, frequentemente insensível para com essas mesmas pessoas.O trágico destino da Primavera de Praga serviu
E o socialismo cubano, o que tem a ver com isso? Tem a ver que, a partir de abril deste ano, durante o 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, o país terá a oportunidade de discutir aquela que poderá ser a maior onda de mudanças no socialismo da ilha desde a revolução em 1959. Acompanhando a realização de tal Congresso, as forças progressistas e libertárias do mundo esperam ansiosas por ver ali um pouco do espírito da Primavera de 1968, da mesma forma que o povo cubano espera desse Congresso uma maior realização dos seus anseios por resolver os problemas que afligem o dia a dia do cubano comum, problemas que têm causas muito mais profundas do que tão somente o criminoso bloqueio imposto pelos Estados Unidos à ilha, conforme o próprio presidente cubano Raúl Castro tem admitido em diversas ocasiões.
Assim, nesta que é hoje a pátria do socialismo no mundo, o último bastião da causa revolucionária internacionalista, surge no horizonte uma nova oportunidade de os comunistas corrigirem seus erros e mostrarem ao mundo uma forma de socialismo que melhor apele a anseios populares universais, permitindo ao comunismo sair de sua posição defensiva dos úlitmos vinte anos e voltar a avançar politicamente. Não mais a velha prática de fazer o que for necessário para atravessar o vale, custe o que custar, mas de antes ouvir o que as pessoas lá embaixo no vale têm a dizer. Não mais apenas fazer "o que for melhor" para o povo, mas antes ajudar este a se organizar para que o próprio povo possa fazer para si aquilo que julgar melhor. Em outras palavaras, não mais a dureza desse "utilitarismo" puro e simples, mas também, como nas palavras de Che, a ternura da qual o socialismo não pode prescindir. Clima propício para mudanças radicais dentro do socialismo existe, com a crise mundial do capitalismo pondo em xeque os valores neoliberais e com a América Latina fecunda de governos progressistas (embora seja preciso ressaltar, não socialistas) amigos de Cuba.
Que, a exemplo dos reformadores de 1968, o Partido cubano tenha a coragem, a força e a sensibilidade de mudar o que for preciso, dentro dos marcos do socialismo, pela evolução e aprimoramento deste sistema. E que nenhum comunista sincero se ponha contra as necessárias mudanças dentro da ordem socialista, do contrário se correrá o risco de se repetir a história, primeiro como tragédia e depois como farsa, "ensinando" aos cubanos que eles deveriam pensar em mudanças fora dos marcos do socialismo.
