quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Considerações sobre o caso WikiLeaks

"O fato é que Julian Assange [fundador do WikiLeaks e atualmente preso sob a acusação de estupro] é hoje um preso político, detido sob o mesmo tipo de falso pretexto que é devidamente ridicularizado quando usado para se deter um dissidente russo, chinês ou iraniano. Fosse os segredos de algum desses países que tivesse revelado, o fundador do WikiLeaks seria candidato automático a um Nobel da Paz."
Antonio Luiz Costa, editor da seção internacional da revista Carta Capital

Assine aqui a petição mundial pela libertação de Assange, o preso político número um do "Ocidente".


Nas últimas semanas, tornou-se notório o caso da página de internet WikiLeaks. Fundada pelo ativista australiano Julian Assange, a WikiLeaks já havia ficado conhecida ao fazer vazar documentos sobre crimes de guerra estadunidenses no Iraque, no Afeganistão e na base de Guantánamo. Dessa vez porém foi muito mais longe, revelando, de uma só vez, centenas de milhares de correspondências confidenciais do governo norte-americano, trocadas entre Washington e as inúmeras representações diplomáticas do Império mundo afora, que trazem fatos inquietantes, embora não totalmente inesperadas, sobre os métodos da política exterior estadunidense. Tornaram-se públicas as pressões do Império sobre governos da União Européia para acobertar os sequestros e torturas realizados pela CIA em território europeu, as ordens dadas pela Ministra das Relações Exteriores, Hillary Clinton, para espionar o secretário-geral da ONU, e inúmeras fofocas menores sobre como os EUA vêem o mundo, como desconfiam de seus aliados e ridicularizam seus inimigos.

Há diversas considerações a se fazer sobre o que tais revelações significam para o mundo.

Em primeiro lugar, chama a atenção como o episódio fez cair por completo a máscara de democrata do conjunto de países eufemisticamente chamados de "o Ocidente", bem como demonstrou a íntima relação entre tais governos e o poder econômico transnacional. Realizada numa escala e num grau de coordenação muito além da capacidade deste ou daquele governo, a repressão à "ameaça" WikiLeaks foi fulminante, vindo de todos os lados. Primeiro houve a rápida ação da Interpol e de governos europeus em processar, condenar, perseguir e prender Assange (com base nas acusações de uma sueca ligada a grupos anti-cubanos, tradicionalmente associados à CIA). Paralelo a isso, o WikiLeaks foi deletado dos servidores da Amazon.com e do Everydns.com por "violação dos termos de uso". E a seguir, as doações financeiras ao WikiLeaks via PayPal foram barradas, primeiro pelo eBay, depois pelas redes transnacionais Mastercard e Visa. E por fim, o banco suíço PostFinance encerrou a conta de Assange, sobre a alegação de que este "mentiu" ao dizer que "morava na Suíça", ao mesmo tempo em que hackers anônimos já haviam intensificado os ataques ao WikiLeaks. Por trás de tamanha coordenação, típica de uma novela de teorias da conspiração, fica difícil enxergar apenas o dedo do governo estadunidense. O que uniria o Império norte-americano aos regimes da União Européia, a bancos suíços e à empresas transnacionais, senão seus laços de interesses comuns (por que não dizer, seus interesses de classe em comum)? A burocracia instalada na direção do "governo mundial" EUA-Europa protege os lucros do poder capitalista transnacional, e este lhe retribui quando preciso. Estado e poder econômico se auxiliam sempre quando e onde seus interesses e posições ideológicas se aproximam, agindo conjuntamente de forma a revelar características do mais sutil e requintado (e portanto mais poderoso) tipo de "ditadura", a saber, aquela que a maioria das pessoas não conseguem perceber como tal. Inventar uma acusação para reprimir e silenciar dissidentes como Assange, simplesmente porque não existem leis contra o que ele faz, é um modus operandi clássico deste tipo "esclarecido" (e muito eficiente) de autoritarismo. Como bem observou o editor internacional da Carta Capital, "o Ocidente (sic) tem dificuldade cada vez maior em conviver com os direitos e garantias em nome dos quais julga ter o dever de impor sua vontade ao resto do mundo."

A segunda consideração diz respeito à forma com que a mídia tem tratado o caso. Buscando sempre oscilar de forma "equilibrada" entre suas tendências contraditórias, a de lucrar vendendo notícias e a de manipular essas mesmas notícias para fazer política, para si e seus aliados, a cobertura da imprensa acerca dos "CableGates" do WikiLeaks tem sido ambivalente. Contrariando muitos dos regimes políticos de seus próprios países (aqueles mesmos que recebem seu apoio para sobreviver, e vice versa), os principais jornais mundiais, beneficiados com o recebimento em primeira mão dos arquivos do WikiLeaks, serão capazes de enfrentar seus próprios governos pelo direito de continuar convertendo os documentos secretos estatais vazados em lucrativas mercadorias, principalmente nestes tempos de crise financeira geral por que passam as grandes publicações impressas. Um exemplo claro disso são os recentes choques entre Estado e mídia na Austrália, onde a primeira-ministra do pais tem sido duramente criticada pela imprensa ao pedir a condenação de Assange. Mas isso não significa que os jornalões estejam dispostos a revelar "os fatos como eles são", de forma que "doa a quem doer".

De fato, conforme demonstra a cobertura dada à imprensa sobre os "CableGates" de Cuba, uma das grandes fragilidades dos relatórios do WikiLeaks tem sido justamente o "crivo" que estes recebem dos grandes jornais antes de chegarem ao conhecimento do grande público. Por simples comodidade, as pessoas preferem ler ou assistir as reportagens do seu jornal ou telenoticiário favorito do que ler a íntegra (em inglês) dos documentos originais do WikiLeaks em um dos inúmeros "espelhos" do site na internet. Isso se puderem lê-los no original, já que há o agravante de que a imensa maioria dos documentos ainda não estão disponíveis nem na página do próprio WikiLeaks, de forma que o grosso das informações permanece em mãos exclusivas do grande cartel da mídia transnacional. Em outras palavras, os "fatos" podem ser novos e até bombásticos, mas eles continuam sendo filtrados pelas mesmas (poucas) mãos de sempre. Os próprios jornais reconhecem que fazem uma "seleção" das informações que recebem do WikiLeaks, descartando o que vêem como "falso", e obviamente "trabalhando" os relatórios para inseri-los em suas manchetes e reportagens - e ninguém é ingênuo de acreditar que, ao fazê-lo, os meios de imprensa não desviam "um pouco" a essência dos informes, sempre de acordo com seus próprios preconceitos e interesses. A grande mídia pode assim se valer da crescente fama do WikiLeaks para intensificar a difusão das suas próprias "visões de mundo" acerca dos governos e de suas relações, dando ênfase ao que for do interesse do poderes econômicos que sempre o apoiaram, e relativizando (ou até mesmo ignorando) o que não for de tais interesses – tudo isso, claro, sem deixar de lucrar com a venda das "verdades" contidas nos "CableGates".

Por último, mas não menos importante, fica mais uma vez demonstrado o potencial que têm as modernas tecnologias de comunicação (em especial a internet), aliadas ao ativismo político consciente e engajado, em subverter radicalmente as velhas e corrompidas estruturas do sistema capitalista globalizado. Embora ainda se expôs muito pouco de tudo que merecemos saber (e tampouco temos garantias de que, algum dia, conheceremos o que há de mais sério nos "cablegates"), o fato é que, pela primeira vez, milhões no mundo inteiro começam a ter acesso aos segredos de governos de todo o planeta, e em especial do "ocidente", totalmente à revelia destes, da mesma forma em que escancaram algumas das principais contradições do Estado moderno, como a de ter de parecer democrático, ao mesmo tempo em que precisa ser anti-democrático. Iniciativas como o WikiLeaks servem portanto como vitais esclarecedores da realidade, ajudando a expor quem são e como agem os verdadeiros inimigos dos povos do mundo.

Fica também uma sugestão no ar: por que não criar uma espécie de WikiLeaks especializado nas ações de grandes empresas, suas manipulações comerciais, sua lavagem de dinheiro do crime organizado e suas doações de campanha a políticos (e a forma como manipulam estes)? Seria extremamente eficaz como revelador das entranhas mais profundas do funcionamento do capitalismo e da materialização do poder de classe capitalista, e sem dúvida faria o maior sucesso, não só nos EUA como também no Brasil.

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