sábado, 12 de fevereiro de 2011

Tunísia e Egito: considerações sobre a "primavera dos povos" do mundo árabe

Primeira Consideração: o sionismo, o grande capital e o Império saem derrotados.

A queda dos regimes autoritários de Hosni Mubarak no Egito e de Zine Ben Ali na Tunísia representa, ainda que parcialmente, uma importante derrota para o sionismo, o grande capital transnacional e o Império norte-americano. O primeiro derrotado foi o capital, por ouvir mais uma vez a sua ladainha do "livre mercado" levar um sonoro "não" das ruas. Até recentemente elogiado pelos "especialistas de mercado" como um obediente seguidor da cartilha neoliberal e "exemplo" de desenvolvimento e prosperidade, a Tunísia foi redimida pela ação de seu próprio povo, que cansou de ouvir calado aos "especialistas" e decidiu mostrar ao mundo a sua própria voz, a voz da verdade dos explorados. A seguir, com a queda do autocrata egípcio, o Império e o sionismo perderam um dos governos mais lacaios das políticas imperiais dos EUA e de Israel na região. O Imperialismo tem agora, ainda que por enquanto, dois aliados a menos no mundo árabe, e a onda ainda segue o seu caminho.

Segunda Consideração: as causas estruturais desta e das próximas revoluções.

Muito além da auto-imolação do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi, que se incendiou até a morte em protesto contra o fechamento de seu pequeno comércio de rua e contra a corrupção das autoridades que tentaram suborná-lo, o estopim da crise revolucionária que hoje subverte a realidade do Mundo Árabe tem raízes no desemprego e na crise de escassez de alimentos. Estas, por sua vez, são resultado direto do desenvolvimento do capitalismo e de suas contradições (como o desemprego estrutural tecnológico, a crise "financeira" global de 2008 e a expansão das relações capitalistas ao campo, no chamado agronegócio), mas também resulta da Crise Ambiental e seu impacto direto nas safras agrícolas. Fica assim demonstrado o potencial explosivo que o desenvolvimento simultâneo do "aquecimento global" e das contradições do capitalismo representam. O inevitável aguçamento das crises ambiental e econômica irá fatalmente multiplicar as crises revolucionárias e fará de Egito e Tunísia os laboratórios da História do século XXI, de forma que, contraditoriamente, o crescente sofrimento dos povos do mundo será o mesmo caldo fértil capaz de elevar a consciência política destes povos rumo à sua emancipação, levando-os a enfrentamentos cada vez mais radicais e politizados contra seus opressores mais imediatos, sejam eles "ditaduras" ou "democracias fortes". O "vento da mudança" que hoje se espalha pelos países do mundo árabe pode também ser interpretado como uma repetição da onda anti-neoliberal que varreu a América Latina há uma década, conduzindo ao poder governos progressistas e/ou revolucionários por todo o continente, demonstrando que a chama de contestação contra a injusta ordem global capitalista está longe de se apagar, e na verdade vem reavivando.

Terceira Consideração: o "ocidente" e sua democracia "dois pesos e duas medidas".

Salta aos olhos a hipocrisia dos líderes políticos da Europa e da América do Norte e de seus "formadores de opinião" da grande mídia, quando estes comemoram a chegada da "democracia" nos países árabes. Não eram "livres" até agora pouco esses grandes aliados do "ocidente democrático"? Se não, por que os mandachuvas da ordem global capitalista apoiaram com tanto esmero tais regimes, fechando os olhos por décadas a todos os abusos e violações dos direitos humanos cometidos por seus grandes amigos no oriente médio? Logo no início dos protestos, os grandes "guardiões da liberdade e dos direitos humanos" do ocidente negaram qualquer necessidade de mudança nestes países, inclusive tachando as manifestações populares de "perigosas". Um caso emblemático desse cinimso dos donos do mundo foi proporcionado pelo vice de Obama, Joe Biden, que duas semanas atrás sustentava enfaticamente que Mubarak "não era ditador" e que não deveria renunciar. Agora, porém, que o tirano egípcio é escorraçado pelo seu próprio povo e fica impossível esconder a realidade, o próprio Biden vem a público saudar o "dia histórico" da chegada da "democracia" no Egito... Por mais poder que tenham para falsificar os fatos e manipular a opinião pública, até mesmo os donos do mundo se veem obrigados a reescrever suas verdades quando o povo decide escrever a História.

Quarta Consideração: como qualquer autoritarismo sempre derruba a si mesmo.

As revoluções tunisiana e egípcia evidenciam mais uma vez o quanto os instrumentos de opressão usados por poucos para controlar a maioria facilmente se voltam contra seus próprios arquitetos. Pois o fato é que poucos no mundo faziam idéia do tanto que os povos tunisiano e egípcio odiavam os seus governantes, e talvez estes próprios governantes imaginassem menos ainda. Não fosse toda a censura e a imposição de pensamentos únicos sobre os seus povos, Ben Ali e Mubarak seriam capazes de preceber o verdadeiro estado de espírito de seus governados e realizar "reformas" capazes de perpetuá-los no poder. Mas precisamente porque eram tirânicos e autocráticos, não tiveram a percepção (e provavelmente, muito menos a vontade) de fazê-lo. A grande tragédia de todo governo tirânico e/ou autocrático que existiu ou existirá, seja qual for o tipo de sistema social que ele governa, é que a sua incapacidade de ouvir a voz do povo, sua obssessão em fazer sempre as coisas do seu jeito, e não do jeito que a maioria prefere, faz acumular um descontentamento surdo que, proibido de se expressar, sempre acaba um dia por explodir como numa panela de pressão, onde quanto maior a (o)pressão, mais violento é o estouro, tão logo surja uma válvula de escape. A radicalidade de tal explosão se manifesta numa rejeição sistemática a tudo aquilo que se relaciona com o antigo regime, de forma que todas as realizações do regime destituído, para o "mal" ou para o "bem", passam a ser postas em xeque. É neste ponto específico, e somente neste, que a onda revolucionária do mundo árabe encontra paralelo nos acontecimentos vividos no leste europeu em 1989.

Quinta Consideração: a luta (pode) estar apenas começando.

Embora os povos tunisiano e egípcio tenham vencido uma árdua batalha ao derrubar os tiranos que os oprimiam, a luta por sua emancipação encontra-se apenas nos seus estágios iniciais. Ambos os países vivem hoje uma situação de "processo revolucionário em curso", um momento em que a questão em torno da "grande política", isto é, aquela política que trata e/ou questiona as estruturas da sociedade, se torna mais aberta do que nunca. É um ponto de inflexão que vai definir os rumos do país, podendo (ou não) levar o curso da História a guinadas antes jamais imaginadas. Porém, para trilhar tais rumos, consolidando sua revolução e impedindo que ela morra no nascedouro, é preciso que os povos desses países tenham consciência da necessidade de irem além. É preciso não apenas derrubar governos, mas crias novas formas de governar; não apenas destruir o velho, mas também ter a convicção, a coragem e a organização para construir o novo. Em outras palavras, para seguir avançando, é preciso passar da revolução puramente política para a revolução social. Do contrário, estes povos que hoje iniciam as suas revoluções voltarão a ser tragados pela velha ordem, dessa vez disfarçada de "novo". Este é o risco: muda-se algo para que tudo permaneça como está. Externamente, tais países sofrerão fortes pressões para mantê-los subordinados à ordem capitalista global, denunciando-se na grande mídia e (retaliando-se) nos fóruns econômicos qualquer "irresponsabilidade" ou "loucura" que supostos novos governos revolucionários ousem levar adiante. E internamente, em especial no caso do Egito, há o perigo que os militares, historicamente muito ligados aos interesses dos Estados Unidos, interfiram em qualquer tentativa de se romper com a subordinação egípcia ao sionismo e à dominação do Império.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um Convite*

Creio que a Revolução Cubana dignificou nosso país e os cubanos. E que o Governo Revolucionário tem sido o melhor governo de nossa História.

Sim: antes da Revolução, Havana estava muito mais pintada, os buracos eram poucos e se caminhava ruas e ruas de lojas cheias e iluminadas. Mas, quem comprava naquelas lojas? Quem podia caminhar com verdadeira liberdade por aquelas ruas? Claro, os que “tinham com que” nos seus bolsos. Os demais, a ver as vitrines e a sonhar, como minha mãe, como nossa família, como a maioria das famílias cubanas. Por aquelas avenidas fabulosas somente passeavam os “cidadãos respeitáveis”, bem considerados em primeiro lugar por seu aspecto. Os esfarrapados, os mendigos, quase todos negros, tinham que rodear, porque quando um policial os via em alguma rua “decente”, a cacetetes eram retirados dali.

Isto eu vi com meus próprios olhos de criança de 7 ou 8 anos e continuei vendo até meus 12, quando triunfou a Revolução.

Na esquina da minha casa havia dois bares, em um deles, as vezes, em vez de jantar, tomávamos uma vitamina. Em várias ocasiões passaram marines, caindo de bêbados, buscando prostitutas e se metendo com as mulheres do bairro. Um jovem vizinho nosso, que saiu para defender sua irmã, o atiraram ao chão e quando chegou a polícia, quem acham que levaram? Os abusados? Claro que não. A pontapés pelos fundilhos levaram aquele jovem universitário que, logicamente, depois se destacava nas manifestações estudantis.

Aí estão as fotos de um marine urinando, sentado na cabeça da estátua de Martí, no Parque Central de nossa Capital.

Isso era Cuba, antes de 59. Pelo menos assim eram as ruas de Centrohabana que eu vivi dia a dia, no distrito de San Leopoldo, pegado a Dragones e Cayo Hueso. Agora estão destruídas, me desagrada passar por ali porque é como ver as ruínas da minha própria infância. Cantei-a em “Trovador antiguo”. Como pudemos chegar a semelhante deterioração? Por muitas razões. Muita culpa nossa por não haver visto as árvores, embelezadas com o bosque, mas culpa também dos que querem que regressem os marines para humilhar a imagem de Martí.

Estou de acordo em reverter os erros, em banir o autoritarismo e construir uma democracia socialista sólida, eficiente, com um funcionamento que sempre se possa melhorar, que se garantisse a si mesma. Me nego a renunciar aos direitos fundamentais que a Revolução conquistou para o povo. Antes de mais nada, dignidade e soberania e também saúde, educação, cultura e uma velhice honrada para todos. Gostaria de não descobrir o que está acontecendo no meu país, pela imprensa do exterior, cujos enfoques trazem não pouca confusão. Gostaria que melhorasse muitas coisas que eu disse e outras que não disse.

Mas, acima de tudo, não quero voltar àquela ignomínia, aquela miséria, aquela falsidade de partidos políticos, que quando ganhavam o poder se entregavam ao maior lance. Tudo aquilo acontecia com amparo na Declaração dos Direitos do Homem e da Constituição de 1940. A experiência pré-revolucionária cubana e em muitos outros países, demonstra o que importa direitos humanos nas democracias representativas.

Muitos daqueles que hoje atacam a Revolução, foram educados por ela. Profissionais imigrantes, que comparam forçosamente as condições ideais da “culta Europa”, com a de Cuba fustigada. Outros, mais velhos, que talvez chegaram a “ser algo”, graças à Revolução, hoje se exibem como ideólogos pró-capitalistas, estudiosos das Leis e da História, disfarçados de trabalhadores humildes.

Pessoalmente, eu não suporto os “vira-casacas” fervorosos; estes arrependidos, com seus cursinhos de marxismo e tudo, que eram mais papistas que o Papa e agora são seu próprio reverso. Não lhes desejo mal, a ninguém desejo, mas tal inconsistência me deixa enojado.

A Revolução, como Prometeu (devo-lhe uma canção com esse nome), iluminou os esquecidos. Porque em vez de dizer ao povo; acreditem, lhes disse; leiam. Portanto, como o herói mitológico, querem fazê-la pagar por sua ousadia, amarrando-a em um cume distante, onde um abutre (ou uma águia imperial) devorará eternamente suas entranhas. Eu não nego os erros e os voluntarismos, mas eu não sei esquecer o apelo do povo da Revolução contra os ataques, que têm usado todas as armas para ferir e matar, com os mais poderosos e sofisticados meios de comunicação (e distorção) de idéias.

Eu nunca disse que o bloqueio tem toda a culpa por todas as nossas desgraças. Mas, a existência do bloqueio não nos deu a oportunidade de medirmos a nós mesmos.

Eu gostaria de morrer com as responsabilidades de nossa desfaçatez bem esclarecidas.

Por isso, convido todos aqueles que amam Cuba e desejam a dignidade aos cubanos, a gritar comigo agora, amanhã, em toda parte: ABAIXO O BLOQUEIO!

* Por Silvio Rodríguez (fonte: http://www.cubadebate.cu/opinion/2010/09/10/invitacion/)
Tradução Cuba Viva

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Considerações sobre o caso WikiLeaks

"O fato é que Julian Assange [fundador do WikiLeaks e atualmente preso sob a acusação de estupro] é hoje um preso político, detido sob o mesmo tipo de falso pretexto que é devidamente ridicularizado quando usado para se deter um dissidente russo, chinês ou iraniano. Fosse os segredos de algum desses países que tivesse revelado, o fundador do WikiLeaks seria candidato automático a um Nobel da Paz."
Antonio Luiz Costa, editor da seção internacional da revista Carta Capital

Assine aqui a petição mundial pela libertação de Assange, o preso político número um do "Ocidente".


Nas últimas semanas, tornou-se notório o caso da página de internet WikiLeaks. Fundada pelo ativista australiano Julian Assange, a WikiLeaks já havia ficado conhecida ao fazer vazar documentos sobre crimes de guerra estadunidenses no Iraque, no Afeganistão e na base de Guantánamo. Dessa vez porém foi muito mais longe, revelando, de uma só vez, centenas de milhares de correspondências confidenciais do governo norte-americano, trocadas entre Washington e as inúmeras representações diplomáticas do Império mundo afora, que trazem fatos inquietantes, embora não totalmente inesperadas, sobre os métodos da política exterior estadunidense. Tornaram-se públicas as pressões do Império sobre governos da União Européia para acobertar os sequestros e torturas realizados pela CIA em território europeu, as ordens dadas pela Ministra das Relações Exteriores, Hillary Clinton, para espionar o secretário-geral da ONU, e inúmeras fofocas menores sobre como os EUA vêem o mundo, como desconfiam de seus aliados e ridicularizam seus inimigos.

Há diversas considerações a se fazer sobre o que tais revelações significam para o mundo.

Em primeiro lugar, chama a atenção como o episódio fez cair por completo a máscara de democrata do conjunto de países eufemisticamente chamados de "o Ocidente", bem como demonstrou a íntima relação entre tais governos e o poder econômico transnacional. Realizada numa escala e num grau de coordenação muito além da capacidade deste ou daquele governo, a repressão à "ameaça" WikiLeaks foi fulminante, vindo de todos os lados. Primeiro houve a rápida ação da Interpol e de governos europeus em processar, condenar, perseguir e prender Assange (com base nas acusações de uma sueca ligada a grupos anti-cubanos, tradicionalmente associados à CIA). Paralelo a isso, o WikiLeaks foi deletado dos servidores da Amazon.com e do Everydns.com por "violação dos termos de uso". E a seguir, as doações financeiras ao WikiLeaks via PayPal foram barradas, primeiro pelo eBay, depois pelas redes transnacionais Mastercard e Visa. E por fim, o banco suíço PostFinance encerrou a conta de Assange, sobre a alegação de que este "mentiu" ao dizer que "morava na Suíça", ao mesmo tempo em que hackers anônimos já haviam intensificado os ataques ao WikiLeaks. Por trás de tamanha coordenação, típica de uma novela de teorias da conspiração, fica difícil enxergar apenas o dedo do governo estadunidense. O que uniria o Império norte-americano aos regimes da União Européia, a bancos suíços e à empresas transnacionais, senão seus laços de interesses comuns (por que não dizer, seus interesses de classe em comum)? A burocracia instalada na direção do "governo mundial" EUA-Europa protege os lucros do poder capitalista transnacional, e este lhe retribui quando preciso. Estado e poder econômico se auxiliam sempre quando e onde seus interesses e posições ideológicas se aproximam, agindo conjuntamente de forma a revelar características do mais sutil e requintado (e portanto mais poderoso) tipo de "ditadura", a saber, aquela que a maioria das pessoas não conseguem perceber como tal. Inventar uma acusação para reprimir e silenciar dissidentes como Assange, simplesmente porque não existem leis contra o que ele faz, é um modus operandi clássico deste tipo "esclarecido" (e muito eficiente) de autoritarismo. Como bem observou o editor internacional da Carta Capital, "o Ocidente (sic) tem dificuldade cada vez maior em conviver com os direitos e garantias em nome dos quais julga ter o dever de impor sua vontade ao resto do mundo."

A segunda consideração diz respeito à forma com que a mídia tem tratado o caso. Buscando sempre oscilar de forma "equilibrada" entre suas tendências contraditórias, a de lucrar vendendo notícias e a de manipular essas mesmas notícias para fazer política, para si e seus aliados, a cobertura da imprensa acerca dos "CableGates" do WikiLeaks tem sido ambivalente. Contrariando muitos dos regimes políticos de seus próprios países (aqueles mesmos que recebem seu apoio para sobreviver, e vice versa), os principais jornais mundiais, beneficiados com o recebimento em primeira mão dos arquivos do WikiLeaks, serão capazes de enfrentar seus próprios governos pelo direito de continuar convertendo os documentos secretos estatais vazados em lucrativas mercadorias, principalmente nestes tempos de crise financeira geral por que passam as grandes publicações impressas. Um exemplo claro disso são os recentes choques entre Estado e mídia na Austrália, onde a primeira-ministra do pais tem sido duramente criticada pela imprensa ao pedir a condenação de Assange. Mas isso não significa que os jornalões estejam dispostos a revelar "os fatos como eles são", de forma que "doa a quem doer".

De fato, conforme demonstra a cobertura dada à imprensa sobre os "CableGates" de Cuba, uma das grandes fragilidades dos relatórios do WikiLeaks tem sido justamente o "crivo" que estes recebem dos grandes jornais antes de chegarem ao conhecimento do grande público. Por simples comodidade, as pessoas preferem ler ou assistir as reportagens do seu jornal ou telenoticiário favorito do que ler a íntegra (em inglês) dos documentos originais do WikiLeaks em um dos inúmeros "espelhos" do site na internet. Isso se puderem lê-los no original, já que há o agravante de que a imensa maioria dos documentos ainda não estão disponíveis nem na página do próprio WikiLeaks, de forma que o grosso das informações permanece em mãos exclusivas do grande cartel da mídia transnacional. Em outras palavras, os "fatos" podem ser novos e até bombásticos, mas eles continuam sendo filtrados pelas mesmas (poucas) mãos de sempre. Os próprios jornais reconhecem que fazem uma "seleção" das informações que recebem do WikiLeaks, descartando o que vêem como "falso", e obviamente "trabalhando" os relatórios para inseri-los em suas manchetes e reportagens - e ninguém é ingênuo de acreditar que, ao fazê-lo, os meios de imprensa não desviam "um pouco" a essência dos informes, sempre de acordo com seus próprios preconceitos e interesses. A grande mídia pode assim se valer da crescente fama do WikiLeaks para intensificar a difusão das suas próprias "visões de mundo" acerca dos governos e de suas relações, dando ênfase ao que for do interesse do poderes econômicos que sempre o apoiaram, e relativizando (ou até mesmo ignorando) o que não for de tais interesses – tudo isso, claro, sem deixar de lucrar com a venda das "verdades" contidas nos "CableGates".

Por último, mas não menos importante, fica mais uma vez demonstrado o potencial que têm as modernas tecnologias de comunicação (em especial a internet), aliadas ao ativismo político consciente e engajado, em subverter radicalmente as velhas e corrompidas estruturas do sistema capitalista globalizado. Embora ainda se expôs muito pouco de tudo que merecemos saber (e tampouco temos garantias de que, algum dia, conheceremos o que há de mais sério nos "cablegates"), o fato é que, pela primeira vez, milhões no mundo inteiro começam a ter acesso aos segredos de governos de todo o planeta, e em especial do "ocidente", totalmente à revelia destes, da mesma forma em que escancaram algumas das principais contradições do Estado moderno, como a de ter de parecer democrático, ao mesmo tempo em que precisa ser anti-democrático. Iniciativas como o WikiLeaks servem portanto como vitais esclarecedores da realidade, ajudando a expor quem são e como agem os verdadeiros inimigos dos povos do mundo.

Fica também uma sugestão no ar: por que não criar uma espécie de WikiLeaks especializado nas ações de grandes empresas, suas manipulações comerciais, sua lavagem de dinheiro do crime organizado e suas doações de campanha a políticos (e a forma como manipulam estes)? Seria extremamente eficaz como revelador das entranhas mais profundas do funcionamento do capitalismo e da materialização do poder de classe capitalista, e sem dúvida faria o maior sucesso, não só nos EUA como também no Brasil.

Cuba e o WikiLeaks

Uma das inúmeras correspondências secretas do governo norte-americano, endereçada a Washington pelo Escritório de Interesses dos EUA em Havana e fornecida pelo site WikiLeaks ao jornal espanhol El País, traz diversas informações a respeito de Cuba.

Em primeiro lugar, salta aos olhos a descoberta do fato de que Anna Ardin, uma das suecas que acusam Julian Assange de estupro, tem ligações com grupos opositores anti-Cuba, que por sua vez se ligam tradicionalmente à CIA e ao Império estadunidense. Estaria assim revelada a conexão entre o governo estadunidense e a prisão de Assange, decretada pelo Judiciário sueco?

Mas há muito mais no WikiLeaks a respeito de Cuba, embora não se possa comprovar a veracidade de quaisquer das informações veiculadas pela organização.

Em primeiro lugar, dizem os escritos da diplomacia estadunidense em Havana que membros do ETA, das FARC e do ELN teriam estado em Cuba nos últimos anos, e que o governo castrista seria "capaz de influenciar" a guerrilha colombiana, embora se reconheça que não houve qualquer "planejamento de ações" por parte desses grupos dentro da ilha ou com o apoio de seu governo. O documento reconhece também a recusa da liderança da Revolução Cubana em permitir que outros países usem seu território para planejar ações "hostis" contra o Império, e admite que não existe em Cuba qualquer tipo de iniciativa "terrorista" anti-EUA, nem por parte do governo nem por parte de quaisquer grupos lá presentes - o curioso é que, mesmo com isso tudo, Cuba continua figurando há décadas na lista do governo estadunidense de "países que apóiam o terrorismo"!

O documento também afirma, na visão dos representantes norte-americanos em Havana, que o governo de Cuba "mantém controle quase total sobre todas as organizações da ilha", que a "corrupção" (notadamente a chamada "pequena corrupção") estaria largamente difundida por conta da delicada situação material do país, e que a Direção de Inteligência cubana é "profissional, capaz e altamente efetiva na penetração em redes na ilha e na perseguição de indivíduos que considerem ser terroristas".


O El País da Espanha distorce as palavras do diplomata estadunidense em sua manchete, ao falar de uma tal "eficácia cubana contra dissidentes", mas não menciona quem são esses "dissidentes", ignorando por exemplo o episódio, relatado no próprio documento, em que um desses "prisioneiros políticos" ameaçou um dos diretores do escritório de interesses dos EUA em Havana, simplesmente por causa da "demora" deste em agir "em favor da sua causa" de "refugiado". Outro jornal, o Miami Herald, dos EUA, deu mais ênfase à existência de "terroristas" em Cuba do que ao fato de que, se são terroristas de fato, não estiveram em Cuba para planejar ou fazer "terrorismo" - e tampouco receberam apoio do governo cubano para tanto.

De fato, conforme demonstra a cobertura dada à imprensa sobre os "CableGates" de Cuba, uma das grandes fragilidades dos relatórios do WikiLeaks tem sido justamente o "crivo" que estes recebem dos grandes jornais antes de chegarem ao conhecimento do grande público. Por simples comodidade, as pessoas preferem ler ou assistir as reportagens do seu jornal ou telenoticiário favorito do que ler a íntegra (em inglês) dos documentos originais do WikiLeaks em um dos inúmeros "espelhos" do site na internet. Em outras palavras, os "fatos" podem ser novos e até bombásticos, mas eles continuam sendo filtrados pelas mesmas mãos de sempre. Os próprios jornais reconhecem que fazem uma "seleção" das informações que recebem do WikiLeaks, descartando o que vêem como "falso", e obviamente "trabalhando" os relatórios para inseri-los em suas manchetes e reportagens - e ninguém é ingênuo de acreditar que, ao fazê-lo, os meios de imprensa não desviam "um pouco" a essência dos informes, sempre de acordo com seus próprios preconceitos e interesses. A grande mídia pode assim usar facilmente o nome do WikiLeaks para intensificar a difusão das suas próprias "visões de mundo" acerca dos governos e de suas relações, dando ênfase ao que for do interesse do poderes econômicos que sempre o apoiaram, e relativizando (ou até mesmo ignorando) o que não for de tais interesses – tudo isso, claro, sem deixar de lucrar com a venda das "verdades" contidas nos "CableGates".

Nota sobre a "guerra do Rio"

(Nota Política do PCB)


Nada de novo no “front” do Rio de Janeiro.

Estimulada por uma mídia burguesa, aliada ao governo do Estado do Rio de Janeiro e a sua política de Segurança Pública, a população brasileira tem a falsa impressão de que a região metropolitana do Rio de Janeiro está prestes a viver novos dias, com uma melhora qualitativa da sensação de segurança.

Foi a busca por tal sensação de segurança que levou a grande maioria dos trabalhadores, além da totalidade dos setores médios e da elite, a parar frente à TV nos últimos dias para assistir a um espetáculo midiático, comparável à invasão do Iraque pelo imperialismo norte-americano. Era como um filme de mocinhos e bandidos, em que a grande maioria torcia avidamente para que as polícias militar e civil e ainda as Forças Armadas, simplesmente eliminassem a vida de varejistas do tráfico de drogas – mesmo que, a custo disso, morressem inocentes, e bairros populares fossem transformados em verdadeiras praças de guerra.

Os últimos acontecimentos vêm confirmar o caráter de ocupação de uma zona de guerra, onde os civis de solo ocupado, pouco, ou nenhum direito tem. Multiplicam-se denuncias ora formais, ora pelos sussurros escondidos pelo medo de moradores que tiveram dinheiros roubados pela policia, ameaças de agressão, desaparecimentos sem explicação nenhuma dos órgãos oficiais. Cenas que parecem reflexos de um Haiti ocupado pela ONU e pelo Brasil, onde uma forte criminalização dos movimentos sociais, e da própria população ocupada, que tem até o direito de ir e vir questionado pelas “autoridades”.

As denuncias ganham espaços de rodapé nos noticiários, que continuam colocando como manchete as glorias de uma policia que ganhou status de “nada consta” em sua corrida folha de crimes e corrupções, de conivência e até favorecimentos a facções criminosas e grupos de milícias.

Num quadro onde o Secretário de Segurança do Estado, Beltrame, cercado por um forte aparato policial e militar, e todas as pompas da mídia visita a área, como legitimo representante de uma força de ocupação, como se tratasse de um território inimigo. Apresentando mais uma vez para a população local, a única face do estado para os trabalhadores, a face da repressão.

Ao PCB preocupa esse fato: estimula-se, entre a população, uma visão fascistóide de mundo, como se “limpezas finais” fossem soluções para qualquer conflito. A História já demonstrou, através de vários exemplos, que tal pensamento deve ser firmemente combatido. Após as últimas ações, ocorridas nesse final de semana no complexo do Alemão, impõem-se algumas afirmações e questionamentos. Crer que os acontecimentos da última semana garantirão a segurança desejada pela população é equivocado; transmitir isso para população - como vêm fazendo os meios de comunicação – é propaganda mentirosa.

Há décadas o tecido social no Rio de Janeiro vem se deteriorando por culpa de interesses capitalistas tanto na organização do território quanto na oferta de serviços e equipamentos públicos para a maioria da população.

Tal fato tende a se agravar: o custo de vida na região metropolitana do Rio cresce exponencialmente desde que a cidade foi escolhida sede das Olimpíadas de 2016, e o exemplo mais nítido disso está no mercado imobiliário. Ter um teto sob o qual morar, no Rio de Janeiro, está cada vez mais caro. Para piorar a situação, a população desta região metropolitana vive com os maiores custos de alimentação e transporte público do país.

Ao mesmo tempo, as políticas de emprego, geração e transferência de renda, educação, saúde, além da oferta de equipamentos esportivos e sócio-culturais são cada vez mais vilipendiadas pela lógica capitalista de ausência e desresponsabilização do Estado.

Não à toa as Oscips no setor de atendimento médico e o desempenho pífio dos estudantes do Estado nos exames do Ministério da Educação, além de fatores de menor repercussão midiática, como a concentração de cinemas e teatros nas áreas mais abastadas da cidade, bem como a ausência de locais para o lazer. Concentram-se nessas áreas do Rio de Janeiro os piores indicadores sociais, os maiores índices de gravidez adolescente, a maior incidência de subemprego, as maiores deficiências de saneamento básico, etc.

Tais fatos foram jogados para debaixo do tapete nas últimas eleições, numa aliança explícita entre os grandes grupos de mídia e o atual grupo político que comanda o Rio de Janeiro. Ao contrário de sua postura quase sempre denuncista e falsamente moralizante, a imprensa burguesa chegou ao ponto de escamotear a existência de trabalho escravo e os claros indícios de enriquecimento ilícito, materializado entre outras coisas em mansões em Angra dos Reis (RJ); fatores que atingiriam politicamente personagens fundamentais desse agrupamento político.

No meio de tudo isso está a atual política de Segurança Pública do Rio de Janeiro. É ela a fiadora de manchetes mentirosas e da ação hegemônica em criminalizar a pobreza entre a população. É a atual política de segurança pública, materializada fundamentalmente nas UPPs, que poderá viabilizar projetos políticos maiores para alguns e o lucro crescente para setores fundamentais da burguesia brasileira e carioca: com a copa do Mundo de 2014 e as olimpíadas de 2016, é preciso garantir uma sensação de segurança mínima para expandir a especulação imobiliária, os serviços de telecomunicações/mídia e os grandes investimentos em infra-estrutura e transporte urbanos, num ciclo propício à corrupção há muito conhecido.

Cabe assim o registro que se segue, publicado pela revista Piauí: as UPPs são um dos maiores “cases” de marketing dos últimos anos. De acordo com a publicação, os “serviços de comunicação e divulgação” da secretaria de segurança do Rio saltaram de R$ 66,9 milhões para R$ 91,7 milhões. Além disso, o secretário José Beltrame já promoveu 138 almoços com “formadores de opinião” desde a posse, e deu 223 entrevistas, sendo que 39 para a imprensa estrangeira, sempre com as UPPs como jóias da pauta.

Assim, é preciso dizer claramente: a atual política de Segurança Pública do Rio de Janeiro é uma farsa, que se presta à expansão dos investimentos privados e a garantia de lucros futuros para grandes grupos do capitalismo internacional e brasileiro.

O controle do território pelo estado – principal ponto da atual política de Segurança Pública e lógica que justifica as UPPS – só vale para algumas localidades, próximas às áreas mais nobres da capital, que servirão como base territorial para a expansão dos investimentos privados e públicos.

Para corroborar nosso ponto de vista, e desmascarar a falácia do atual governador de que todas as comunidades serão “libertadas”, está a mais pura e simples matemática: existem cerca de 1.020 favelas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Hoje as UPPs estão em 14 delas, com um contingente de quase quatro mil policiais (10% do efetivo da PM). Não há orçamento neoliberal que garanta pessoal suficiente para ocupar as mais de 1.000 favelas sem UPPs.

Por outro lado, e estranhamente, todas as UPPs foram instaladas em locais comandados por uma única facção criminosa. Para a Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde vivem mais de 50% da população da cidade e local no qual mandam as milícias (criminosos de farda), não há projeto de UPP.

Foram tais fatores que apenas deslocaram o crime organizado para pontos mais distantes da região metropolitana e, em alguns casos, fizeram mudar de mãos o controle de alguns pontos do varejo das drogas, inclusive em comunidades ditas “pacificadas” pelas UPPs. Estas mudanças por vezes se deram através de acordos, por vezes através da disputa de território – com os tiroteios típicos que vitimizam trabalhadores e inocentes. Não é por outro motivo que, em todas as operações policiais para instalar as atuais 14 UPPs, não houve sequer uma dezena de prisões, um quilo de entorpecente ou uma mísera arma de grosso calibre apreendidos. Isso também explica de onde surgiram tantos armamentos e varejistas do tráfico nas imagens veiculadas pela TV desde a última quinta-feira. Armas que, aliás, não foram fabricadas no interior daquela localidade. Chegaram até ali através de uma cadeia que a muitos interessa manter, pois a muitos enriquece: no atacado pela corrupção; no varejo através dos “arregos” pagos a bandidos de farda.

Esta cadeia do tráfico permanece intocada, como bem sabem os moradores de localidades subjugadas pelas milícias. Os grandes traficantes de drogas e contrabandistas de armas, durante estes dias da “guerra do Complexo do Alemão”, estavam incólumes em suas ricas residências nos bairros nobres, assistindo tudo pela televisão para acompanhar os rumos de seus negócios. Provavelmente estes atacadistas já têm seus interlocutores e sócios entre aqueles que que “ocuparão” a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão.

Ademais, é preciso esclarecer os motivos que justificaram as ações policiais promovidas desde a última quinta-feira: quem de fato promoveu os incêndios de automóveis? Por que tais ações se diferenciaram em muito das promovidas anteriormente pelo tráfico de drogas, inclusive permitindo que os cidadãos se retirassem dos meios de transporte? Por que tais ações se reduziram em muito desde que a ocupação da Vila Cruzeiro virou fato consumado, já que poucos foram os presos até o momento?

Para o PCB, é imperativo o esclarecimento de tais fatos. Que as investigações da polícia e da justiça sejam transparentes e abertas à participação de entidades da sociedade civil.

Por fim o PCB afirma: a culpa pelo atual estado de coisas é do capitalismo, de sua lógica e de seus interesses. Ele é o inimigo a ser combatido e derrotado pelos trabalhadores.

30 de novembro de 2010

Partido Comunista Brasileiro

Secretariado Nacional

Comitê Regional do Rio de Janeiro