Observando o comportamento extremamente crítico com que certos setores da extrema esquerda brasileira e internacional vem avaliando o comportamento da liderança do mais importante processo revolucionário da atualidade, a “revolução bolivariana” da Venezuela, inclusive com estes grupos paradoxalmente invocando o nome do socialismo como justificativa a uma radical oposição contra esta mesma revolução, julgo ser prioritário esclarecer uma certa confusão teórica que há sobre o “processo bolivariano”, e em vista da necessidade urgente de se defender o processo venezuelano contra esta mesma extrema esquerda, procurei desenvolver certos pressupostos teóricos dentro (ou algo próxima) de uma visão marxista, visando invalidar a posição ultra-esquerdista perante à esquerda revolucionária como um todo e demonstrar porque não só é coerente, como também obrigatório a todos que se dizem “socialistas revolucionários” apoiar a liderança do processo venezuelano neste momento crucial da história da Venezuela e da América Latina.
Em primeiro lugar, ideologicamente a posição ultra-esquerdista parece partir do pressuposto de que Chávez, ao liderar uma transformação gradual da sociedade venezuelana, sem partir para uma ruptura imediata da ordem capitalista, não seria por isso um revolucionário socialista, mas somente outro caudilho empenhado em levar adiante a famosa “etapa democrático-burguesa”, ou seja, não buscando levar os trabalhadores ao poder, mas sim procurando apenas fortalecer e consolidar o poder da classe capitalista nacional frente ao Imperialismo (e claro, atacando o povo nesse caminho), num conhecido desvio que repetiria o mesmo reformismo oportunista que levou os “comunistas” do PCdoB a abandonarem a luta revolucionária para aliarem-se, dentro do governo Lula, com o que há de mais reacionário no Brasil. Este primeiro pressuposto teórico ultra-esquerdista é facilmente desconstruído com uma simples análise empírica da conjuntura venezuelana: a própria luta encarniçada que Chávez, nos seus avanços de cada dia, vem precisando travar contra esses capitalistas que ele supostamente estaria “tentando libertar” desmente essa hipótese. É incrível ter que lembrar de uma fato tão óbvio como este, que a grande classe proprietária venezuelana como um todo, diferente de ser aliada, é de fato inimiga ferrenha de Chávez. Bastaria citar o exemplo da Fedecámaras, o principal sindicato patronal venezuelano, que desde a posse de Chávez em 1999 vem movendo uma oposição encarniçada contra o processo bolivariano. Mas também cito como exemplo o maior magnata do país, Gustavo Cisneros (um misto de um Ermírio de Moraes com um Roberto Marinho), que ao contrário do que afirma a “genial” análise de conjuntura da extrema-esquerda, não é um aliado de Chávez. Eu poderia apenas citar as recentes discussões públicas entre Chávez e Cisneros, mas vou além. Há quem aponta o fato da emissora de TV de Cisneros (a Venevisión) ter sua licença renovada na mesma época do cancelamento da concorrente RCTV como uma prova da entrada de Cisneros no rol da “nova elite bolivariana” (se é que esta existe). Porém, se isso fosse verdade, então porque o novo prazo de concessão da Venevisión foi prorrogado por apenas mais cinco anos, e não os vinte e cinco de costume? Este fato esclarecedor revela na verdade uma inteligente tática governista de dividir para conquistar: pois se é verdade que, a exemplo da RCTV, Cisneros e sua Venevisión também estiveram envolvidos diretamente no golpe de 2002 contra Chávez, é verdade também que a pressão que Chávez sofreria caso cancelasse a concessão das duas maiores emissoras privadas do país ao mesmo tempo seria insuportável demais, mesmo para alguém como ele. Basta ver a enorme repercussão negativa que somente o cancelamento da RCTV gerou (mesmo com essa ainda possuindo licença para atuar como TV a cabo!). Por outro lado, escolher cancelar a concessão da Venevisión em lugar da RCTV igualmente poderia gerar uma pressão insuportável contra Chávez, haja visto que o Grupo Cisneros é um colossal conglomerado que controla boa parte da economia venezuelana, possui negócios em três continentes e mais de 50 países, emprega 35.000 pessoas só nos EUA e tem um presidente (o próprio Gustavo Cisneros) bastante prestigiado dentre os círculos de poder mundiais, sendo apontado pelo The New York Times como “uma das figuras mais poderosas da América Latina” e possuindo a amizade de figuras reacionárias históricas como Ronald Reagan e a família Bush. A simples acusação de golpismo que Chávez lançou a Cisneros em 2003 já foi suficiente para gerar reações de chefes de estado em defesa do magnata venezuelano, como a do então primeiro-ministro do Canadá, Jean Chretien, demonstrando toda a extensão da influência de Cisneros. [] Assim, embora ainda não haja acúmulo de forças suficiente para se chocar de frente com uma figura desse porte, francamente, isso não torna Chávez amigo de Cisneros! A tática de Chávez portanto resumiu-se a punir exemplarmente uma TV golpista (desencorajando assim novas iniciativas do tipo) e a acumular mais forças, para talvez daqui a cinco anos, chegar a vez da Venevisión. Como diria Chávez, Cisneros é, certamente, apenas outro “por enquanto”. Fica portanto bastante claro o quão absurdo são os discursos de um setor da extrema-esquerda em especial, que vem tentando ridiculamente fazer um paralelo entre Chávez e Napoleão, “um ex-militar que surgiu do nada para, em meio ao caos revolucionário, tomar as rédeas da Nação das mãos do povo para consolidar o poder da classe burguesa contra os inimigos internos e externos”... Diferente do que a “análise de conjuntura” destes grupos ultra-radicais afirma, a História não é uma simples repetição grosseira de fatos passados, tampouco a França do século XVIII é a Venezuela do século XXI.
Em segundo lugar, é também comum à posição ultra-esquerdista afirmar que a insistência de Chávez em conduzir seu “processo bolivariano” pela via eleitoral caracterizaria ele como apenas mais um reformista, um novo Salvador Allende na melhor das hipóteses, mas jamais um verdadeiro revolucionário, e que portanto apoiá-lo seria anti-revolucionário. Sobre isso eu preciso antes fazer outro importante esclarecimento: não pretendo em hipótese alguma sustentar a tese de que é possível realizar uma revolução socialista pela via eleitoral, já que todos sabemos que isso é impossível. E porque mesmo assim apoiar Chávez é uma tarefa revolucionária? Porque a História sempre foi e sempre será um processo não-linear, contraditório e portanto dialético. Para explicar melhor isso, terei que me alongar ainda mais: é de conhecimento geral que a Revolução Russa influenciou (e ainda influencia) decisivamente o modo de pensar da esquerda revolucionária mundial como um todo, em especial na questão de qual caminho seguir rumo à tomada do poder. Porém, o fato é que a conjuntura política da maior parte mundo atual (incluindo aí tanto o Brasil quanto a Venezuela) pouco lembra a da Rússia de 1917: vivemos em um mundo de “democracia burguesa”, onde as liberdades de expressão e de organização da oposição (inclusive a revolucionária) são muito maiores, onde os governantes são escolhidos através de eleições “limpas e livres”, numa situação política radicalmente diferente da autocrática Rússia czarista, onde qualquer forma de participação (mesmo por parte da burguesia) era terminantemente proibida. É certo que o sucesso inicial da revolução russa (e das revoluções cubana e chinesa, que a grosso modo seguiram a fórmula russa), em contraste com a capitulação reformista da social-democracia européia, ensinaram certas lições valiosas (como a impossibilidade da realização de uma revolução socialista pela via eleitoral, que reafirmamos e sempre reafirmaremos), lições estas que, no outro extremo do espectro, certos grupos ditos “revolucionários” (leia-se PCdoB) teimam em ignorar. Mas é preciso também reconhecer que, se o reformismo puro e simples representa um caminho sem volta, a “via bolchevique”, pura e simples, nem sequer pode ser chamada de caminho na conjuntura atual. Porque a “via bolchevique” era uma luta diferente, com premissas bem diferentes: numa situação como a da Rússia de 1917-20, onde inicialmente o autoritário Governo Provisório prendia e censurava ao mesmo tempo em que afundava a Rússia no caos da guerra, e posteriormente o jovem governo soviético era atacado militarmente por mais de uma dezena de forças militares nacionais e estrangeiras, onde portanto a radicalização era máxima, pegar em armas para promover e sustentar a insurreição violenta era o único caminho possível. Nesse ambiente selvagem não havia qualquer espaço para coalizões, votações ou partidos de oposição, somente havia espaço para matar ou morrer, numa situação claramente diferente da conjuntura atual da maioria dos países do mundo (incluindo aí, volto a afirmar, a Venezuela). Mas então qual é o caminho? Embora para esta pergunta também não haja uma solução pronta, seguramente o caminho a se tomar precisa levar em conta a realidade da “democracia burguesa” e da “via eleitoral” que este sistema reserva à atuação política. Reconhecer esta realidade não significa se vender ao eleitoralismo (em que a eleição não é o meio, mas o fim em si, e onde toda politicagem é válida), mas sim reconhecer que, num estado de amplas liberdades políticas, e portanto de baixa radicalização, não há mínimas condições (qualquer que seja a liderança) para a tal “imediata insurreição proletária”, da mesma forma que ficar apenas gritando e agitando bandeiras nas ruas ou partir para um sindicalismo pretensamente “revolucionário”, que na prática se traduz num classismo desenfreado que não nega mas reproduz a anarquia do mercado (como quando defende-se qualquer greve como um ‘avanço’, mesmo quando os trabalhadores em questão pertencem a um segmento de classe com um salário muito maior do que a média dos demais segmentos da classe trabalhadora) também não levam à revolução. Portanto, nem um “chamado ao povo para que este supere os limites do chavismo” (como se fosse possível superar as condições objetivas e a correlação de forças dadas) nem a defesa intransigente de qualquer movimento grevista (por exemplo, a dos funcionários da estatal petroleira venezuelana PDVSA) são “avanços revolucionários”. São no máximo lutas pontuais (às vezes até ilegítimas), quando não um amontoado de retóricas vazias que ninguém sequer se dá ao trabalho de ouvir.
Volto portanto a repetir, é preciso reconhecer a realidade da existência do jogo eleitoral como ponto de partida para toda ação política, inclusive a revolucionária. Mas como transformar esse “reconhecimento” em ação política? Neste ponto, é bastante válido o exemplo de Engels. Todos sabemos que esse revolucionário convicto, verdadeiro co-autor do marxismo, foi no fim de sua vida e depois tachado por muitos de reformista (“o primeiro revisionista”, se disse certa vez) por ter feito parte de uma conjuntura em que o Partido Social-Democrata alemão expandia sua influência (e suas conquistas sociais) junto às massas pela via eleitoral, em uma Alemanha do final do século XIX que, do ponto de vista das “liberdades políticas”, se assemelhava muito mais ao mundo atual do que a autocrática Rússia czarista. Porém, todos sabemos que, apesar de não negar a via eleitoral, Engels sempre foi um revolucionário. Entender bem como isso é possível é imprescindível para escapar da grande armadilha ideológica do nosso tempo, que é qual postura adotar diante da via eleitoral. E foi precisamente Engels que apresentou uma idéia valiosa para contornar este problema: é preciso insistir sempre na via legal, não por nutrir ilusões reformistas de que a revolução se fará pelo voto, mas sim porque, antes de saltar da legalidade burguesa à inevitável violência revolucionária, é preciso esgotar a via legal. Pois as massas somente aceitarão partir para a barbárie do matar ou morrer quando a via legal não mais permitir que estas avancem nos seus objetivos. Como disse Engels, a decisão de partir à violência não cabe ao povo, mas sim às forças reacionárias. Somente quando estas partirem para a violência contra-revolucionária é que o povo deverá, aí sim, pegar em armas e responder com a violência revolucionária. No fundo, essa idéia não é nada surpreendente. Até mesmo Rosa Luxemburgo, tida por alguns por “mais radical”, compreendia perfeitamente a necessidade de conduzir a luta revolucionária dentro da legalidade eleitoral, buscando dentro desta ordem introduzir crescentes melhorias na vida do povo ao mesmo tempo em que força-se a legalidade capitalista até seus limites, com a serena convicção de que esta “via legal” jamais será capaz de sobrepor-se como alternativa à necessidade da revolução.
Assim, desde obviamente que os revolucionários preservem sua independência perante à burguesia e não percam de vista o objetivo final, seguramente não é nada incoerente a estes participar das eleições capitalistas buscando eleger representantes, muito pelo contrário! Recusar terminantemente qualquer participação efetiva nas eleições capitalistas por desprezá-la como uma coisa burguesa (desde quando votar é algo “burguês”?) é um vício dogmático que certos grupos mais radicais herdaram da tática bolchevique clássica de “assalto aos céus” (que foi a mais apropriada para uma conjuntura radicalmente diferente da atual, volto a frisar). O que leva tais grupos a nutrir um preconceito tão fechado contra a via eleitoral (seja por um preconceito infundado, por confiar num sindicalismo “revolucionário” que quase sempre não passa de um classismo anárquico, por não querer “desviar-se” de um caminho “autenticamente marxista”, ou seja por qualquer outro motivo) pouco importa. O importante mesmo é o resultado político quase sempre desastroso e desumano que esta prática sectária produz. Desastroso porque tal tática de negar irrestritamente a via eleitoral, na atual conjuntura dominante de baixa radicalização, conduz inevitavelmente ao descrédito perante as massas (“esses caras só sabem gritar e ser oposição”, diz o senso comum) levando por extensão ao completo isolamento político. E é desumano porque recusar totalmente a via eleitoral, negando por conseqüência quaisquer melhorias na vida sofrida das massas que esta opção porventura trouxer, ainda que sejam apenas pequenas melhorias, é reproduzir a velha fórmula do “quanto pior melhor”, mesmo que se faça isso de forma inconsciente. Assim, embora outras formas de luta mais pontuais (como a atuação em entidades comunitárias, sindicatos ou outras associações de classe) tenham sim sua importância, elas de (quase) nada adiantarão se não forem coordenadas politicamente a nível nacional por um partido (aliás, eis porque insistir nessa forma de organização). Mas para esse partido conseguir realmente tomar a ofensiva rumo à revolução (não apenas ficando na defensiva), ele deve ir além destas lutas pontuais do dia a dia. Mais do que isso, para não se deixar excluir por conta de preconceitos ultra-esquerdistas, ele deve necessariamente aceitar o desafio de disputar seu programa em todas as esferas da legalidade capitalista, não para se integrar harmoniosamente a essa ordem corrupta, mas sim para desmascarar as limitações do capitalismo e da sua atual expressão política, a “democracia” representativa. Esgotar a via legal, inclusive participando ativamente do jogo eleitoral burguês, deve ser portanto a estratégia central dos nossos dias. Entretanto, é preciso reconhecer que saber conciliar uma participação eleitoral com um programa revolucionário decididamente não é nada fácil, porém este é um desafio que precisa ser enfrentado. O próprio descrédito generalizado que a “classe política” e as suas eleições têm atualmente perante as massas é outro ponto a favor desta tática, pois inserir uma alternativa revolucionária no estéril e desacreditado debate eleitoral da atualidade consiste em um diferencial valioso a qualquer partido.
Mas como fazer na prática esse salto qualitativo de uma eleição à revolução? Em outras palavras, como exatamente esgota-se a via legal? Naturalmente, também não existe uma resposta pronta a essa questão. A História não é uma repetição simplista de fórmulas prontas que se alternam periodicamente, cada caso é um caso. A diferença entre o partido conseguir fazer a revolução ou apenas se tornar mais uma microlegenda que em nada influencia os rumos do país não depende somente do partido revolucionário. Como Lênin demonstrou claramente, depende principalmente das condições objetivas do momento histórico em questão, ou seja, das eventuais crises que o sistema possa estar experimentando, da incapacidade dos partidos tradicionais em contornar essa crise e do grau de consciência e de radicalização alcançado pelas massas (embora é claro o próprio partido revolucionário possa influir nessas variáveis). Em momentos como esse, em que a ordem vigente se encontra a um empurrão de desmoronar, cabe ao partido revolucionário dar esse empurrão para transformar esta crise pré-revolucionária em revolução. Porém, mesmo esse empurrão pode não acontecer da noite pro dia, pois embora neste momento especial de crise pré-revolucionária seja possível esgotar a via legal mais rapidamente (já que em tal conjuntura o sistema se encontra muito próximo dos seus limites), esse esgotamento pode quase sempre ter de ocorrer em estágios, não bruscamente. Mas por quê? Em geral, isso pode ocorrer por força histórica de duas grandes forças dominantes na atualidade:
Primeiro, é preciso reconhecer que a própria consciência geral da nossa época tende cada vez mais fortemente a ver a democracia representativa capitalista como um “valor universal”, um “produto acabado” da civilização, ou na pior das hipóteses, um “mal necessário” para o qual não há qualquer alternativa viável. O senso comum desconhece qualquer noção de evolução histórica das formas de organização social; para ele, sempre houve e sempre haverá “a ditadura” ou “a democracia”. Esse senso comum, cada vez mais arraigado na consciência das massas, a grosso modo ignora a possibilidade (para não dizer a necessidade) de se buscar um novo e mais avançado tipo de democracia. Pois a fim de satisfazer as suas necessidades mais sentidas, o povo sempre tentará primeiro agir nos marcos da legalidade estabelecida, só partindo para a dura tarefa de superar esta legalidade quando ela não for mais capaz de satisfazer seus anseios (ou seja, quando a ordem vigente se esgotar). Logo, antes de se construir a fé na revolução, é preciso desconstruir a fé no reformismo.
Em segundo lugar, no mundo atual, os países se encontram sob uma constante “vigilância” das organizações capitalistas internacionais (como ONG’s, governos e Nações Unidas), que estão sempre prontas a impor “sanções” ou até isolamentos forçados a qualquer país que desrespeitar os “valores universais” da democracia representativa capitalista. Na verdade, não é nenhuma novidade que a ordem burguesa mundial use algum “valor universal” para legitimar cinicamente seus ataques a qualquer desafio à sua injusta autoridade global. A novidade é que, com a globalização, onde as economias nacionais são imensamente mais interligadas (e portanto imensamente mais interdependentes) com relação à economia mundial do que no passado, é cada vez mais difícil e penoso a um país suportar “embargos” ou isolamentos impostos externamente. E nada adianta esperar ingenuamente que, estourando a revolução neste ou naquele país, imediatamente os trabalhadores do resto do mundo se sensibilizem com algum “emocionado” apelo ao “internacionalismo proletário” e se ergam de imediato contra as suas respectivas burguesias nacionais no planeta inteiro. A prática do século XX mostra que a consciência revolucionária quase sempre possui diferentes graus de avanço nas diferentes nações. Um país como Cuba, com uma sociedade extremamente avançada, pode ser obrigado a coexistir longamente com outras sociedades tão “reacionárias” quanto a salvadorenha, havendo portanto o risco de que, se algum país avançar politicamente muito à frente dos demais, este possa ser isolado do mundo, sofrendo gravíssimas conseqüências econômicas que, em última análise, põem em risco os próprios avanços, como de fato acontece com Cuba. Portanto, nos dias atuais é vital a qualquer governo revolucionário que este saiba ter cautela na forma com que avança.
Por fim, como conseqüência destas duas premissas, especialmente a primeira, ao chegar a crise pré-revolucionária é possível que as massas ainda não possuam um grau de consciência política (e uma disposição ao sacrifício) suficientes para se proceder à ruptura definitiva. Freqüentemente haverá a necessidade de se reforçar a experiência política do povo. Mas como reforçar essa consciência para além do senso comum capitalista? E como afinal de contas a via eleitoral pode contribuir para transformar a crise pré-revolucionária em revolução? O surgimento dessa crise pré-revolucionária (pré-requisito para qualquer avanço revolucionário posterior), como já foi dito anteriormente, a grosso modo independe da vontade do partido revolucionário. Mas o que a prática do século XX mostra é que freqüentemente é possível “forçar” o nascimento desta crise pré-revolucionária de diferentes formas, dentre elas a via eleitoral, e é precisamente aí que reside a importância crucial desta forma de luta como primeiro passo para se alcançar o esgotamento da via legal. De fato, ao longo do século passado, diversas vitórias eleitorais de coligações de esquerda (as chamadas frentes populares) em países como a França dos anos 30, a Espanha republicana, o Chile de Allende, a quase vitória eleitoral comunista na Itália do imediato pós Segunda Guerra Mundial e, onde se pretendia chegar, na vitória de Hugo Chávez nas eleições presidenciais de 1998 na Venezuela, para ficar apenas em alguns exemplos, serviram como mola propulsora para crises pré-revolucionárias nestas sociedades, com suas características comuns de radicalização das posições, acirramento da luta de classes, aumento do temor da classe dominante e crescente mobilização espontânea dos trabalhadores. É certo que a própria vitória eleitoral destas frentes populares foi resultado de avanços anteriores na consciência das massas, mas o fato é que estas vitórias eleitorais, num processo tipicamente dialético, contribuíram em muito para provocar um enorme e visível salto qualitativo na radicalização e na consciência destas sociedades, graças à simples euforia que esta simbólica conquista do poder traz. Assim, o que a História mostra é que, muito longe de atrapalhar, a vitória eleitoral destas frentes populares na verdade contribuiu enormemente ao avanço da mobilização e da consciência das massas (e onde ela perdeu, como na Itália, contribuiu decisivamente para esfriar este ímpeto revolucionário). Porém, o que se seguiu a este ponto em cada uma dessas sociedades dependeu (ou ainda depende) das conjunturas específicas de cada uma delas, e é aí que o processo bolivariano começa a se distinguir das demais experiências do passado. Sobre aquelas, um fato negativo impossível de se esconder é que, da vitória eleitoral em diante, todos esses processos revolucionários do passado sucumbiram a seguir. Ocorreu que, por diferentes razões, as lideranças destes movimentos optaram por insistir até o fim na continuação da via institucional capitalista, sem perceberem que o próprio desenrolar do processo os fazia esbarrar nos limites desta ordem em que tanto confiavam. Sem saber (ou mais provavelmente por não quererem proceder à ruptura definitiva), eles insistiam em uma via que nada mais podia acrescentar ao povo. Erraram porque, da vitória eleitoral em diante, não havia outra alternativa para sobreviver além de caminhar em direção à ruptura, ou seja, partir para a revolução. Só que para complicar, em parte por conta da segunda premissa citada acima, este salto não pode ser realizado a qualquer momento. Saber identificar o momento exato para partir à revolução certamente é difícil (em alguns lugares, como na França, este momento sequer chegou, em parte por culpa da própria liderança do processo), mas há como saber quando este momento se aproxima. Pois como dizia Engels, à medida que a classe dominante, acuada pelo avanço do processo, passa a recorrer à violência contra-revolucionária para barrá-lo, e quando torna-se impossível solucionar essa violência dentro da velha legalidade, torna-se então legítimo ao povo e à sua liderança recorrer aí sim à violência revolucionária. Daí em diante, não há mais segredos: este é o momento para, sem hesitação nem piedade, pegar-se em armas rumo à guerra revolucionária, onde o matar ou morrer estará em jogo, onde não há meios termos entre extinguir finalmente os capitalistas como classe ou voltar a ser submetido por esta classe.
Portanto, aqui cabe uma pergunta crucial sobre o futuro do processo bolivariano: irá a liderança do processo partir para a ruptura no momento necessário, ou irá ela insistir no reformismo (o que conduziria inevitavelmente à derrota)? Em outras palavras, a liderança do processo venezuelano quer realmente realizar uma autêntica revolução socialista no país? Quem disser que tem a resposta precisa e infalível a esta pergunta crucial seguramente estará mentindo. Porém, embora o futuro seja uma incógnita, e apesar de ser impossível não guardar-se apreensões com relação ao forte personalismo do processo bolivariano (diferente da maioria dos processos citados anteriormente, no venezuelano a liderança revolucionária se centra totalmente na figura de um único grande líder, o próprio Hugo Chávez) podem-se apontar alguns indícios otimistas com relação aos rumos da “revolução bolivariana”:
Em primeiro lugar, como ex-militar, Chávez possui um controle e uma legitimidade muito maiores perante as Forças Armadas, dificultando uma súbita interrupção do processo por conta de um bem-sucedido golpe militar (como ocorreu no Chile) e inviabilizando rupturas internas muito profundas no Exército de forma a criar uma frente militar reacionária capaz de derrotar as forças bolivarianas numa eventual guerra civil (como na Espanha). Também o passado militar de Chávez parece contribuir para que este não nutra certas ilusões com relação à “boa vontade” da oposição reacionária, como ele deixa bem claro ao afirmar que “nossa revolução é pacífica mas armada.”
Em segundo lugar, é impossível não notar a própria evolução da consciência política de Chávez, que há somente oito anos atrás não passava de um nacionalista e hoje já fala em avançar na democracia participativa, combater o latifúndio e o monopólio privado e construir o socialismo! Aí reside outra peculiaridade da “revolução bolivariana”: a evolução do processo, que ocorre a cada passo mais ousado, a cada vitória eleitoral (com a reação conservadora dialeticamente ajudando nesse sentido) não só contribui para aumentar a consciência das massas como também contribui no avanço da consciência da própria liderança (mais ou menos como ocorreu com Fidel Castro em Cuba, com a diferença que no caso cubano tal processo foi “quase instantâneo”). Assim, pode-se contar com a possibilidade de que, se a liderança do processo ainda não for realmente socialista revolucionária, ela ainda pode alcançar este patamar a tempo.
Por tudo isso, a despeito dos ataques físicos e midiáticos do ranço reacionário (valendo-se do seu imensurável poder financeiro e do senso comum que sempre o beneficiou) e da intransigente oposição ultra-esquerdista, que paradoxalmente também vale-se do senso comum e que sempre vê como inimigo tudo aquilo “que não é puramente marxista”, fechando os olhos inclusive às conquistas que estas “heresias” trazem, em resumo, apesar dos ataques implacáveis dos inimigos naturais do processo e daqueles que deveriam ser aliados, mas que por um dogmatismo quase fundamentalista e uma incrível cegueira histórica, se colocam contra este, o processo avança. Avança para comprovar que, independente do seu desfecho, buscar esgotar a via legal por todos os caminhos (inclusive o eleitoral), como primeiro passo antes de superar esta mesma legalidade, é o caminho necessário a se seguir na atual conjuntura mundial e o mais capaz de produzir resultados. Pois não é preciso repetir mais uma vez as vitórias duradouras que os processos desse tipo sempre produzem (inclusive aqueles que foram derrotados), contrariando o cinismo dos que insistem em apostar no quanto pior melhor. As conquistas sociais e políticas que a Venezuela tem experimentado sob a “revolução bolivariana” falam por si só. Também em nada assusta a visão simplista e fracassomaníaca daquela mesma extrema-esquerda para a qual todos que não guardam a “pureza” do “autêntico caminho revolucionário” não passam de “revisionistas”, “reformistas”, “stalinistas” ou “burgueses”, e que portanto, todos os seus atos sempre estariam “fadados ao fracasso” desde o início, num determinismo de dar inveja até mesmo a Laplace. Pois se outras experiências parecidas não alcançaram o objetivo final da revolução socialista, foi somente por possuírem uma liderança reformista, e não revolucionária (no único dos exemplos acima onde a liderança era majoritariamente revolucionária, a Itália do pós-guerra com o Partido Comunista, a direita teve que fraudar as eleições para liquidar no nascedouro o processo revolucionário). E independente da liderança venezuelana estar ou não visando hoje a revolução socialista (lembrando que este é outro ponto em aberto para o futuro), ela segue o caminho certo, o caminho que proporciona uma democratização sem precedentes na sociedade venezuelana (com as melhorias nas condições de vida do povo e o aprimoramento dos mecanismos de democracia participativa) e que proporciona um riquíssimo aprendizado político e uma forte evolução da consciência e da radicalização do povo, tudo isso sem dar um passo maior do que a conjuntura interna e externa permite. Assim, defender o processo bolivariano e a sua liderança contra quaisquer ataques torna-se então, antes de uma obrigação de qualquer revolucionário, um dever de todo humanista e de todo progressista.
RSF da Sarracéia
Estes são os motivos pelos devemos sim apoiar a “revolução bolivariana” de Chávez. Mas para aqueles mais à esquerda, que ainda insistem em “combater” e “denunciar” a qualquer custo o “retrógrado” governo venezuelano (mesmo que o preço seja o recuo do próprio processo revolucionário), e que na verdade se deleitam com os inevitáveis erros de percurso deste, não há muito mais a dizer. Pois da mesma forma que não existe uma fórmula mágica para realizar-se uma revolução socialista, também nunca haverá um caminho livre de problemas, erros, incoerências ou quaisquer outros efeitos indesejáveis (como sempre haverá aqueles que não compreendem este “pequeno detalhe”). Esta é precisamente a diferença entre a vazia e simplista teoria e a complexa e desafiante prática, ou em outras palavras, essa é a diferença entre o ideal e o real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário