Quando aquele comentarista alemão barbudo anunciou que a disputa do título da mais avançada sociedade existente ia ser decidido entre o Capitalismo e um tal de “Socialismo”, ninguém deu crédito a ele. Como o poderoso time de Smith, Ricardo, Bismark e a Rainha Vitória poderia ser desafiado na decisão por um timinho de um pequeno punhado de teóricos “do-mundo-da-lua” e de agitadores “malucos”? É claro que não, dizia a imprensa esportiva, negando até mesmo que pudesse existir tal jogo. Mesmo que o barbudo alemão insistisse nas inúmeras fragilidades do time do Capital, que iam desde a zaga social cheia de buracos até o instável ataque da economia, ninguém dava atenção a tal confronto. O escrete do Capital, diziam os locutores burgueses, havia na prática ganho antecipadamente o campeonato muito antes quando o time, então comandado pelo técnico Napoleão Bonaparte, eliminara a equipe do Feudalismo com uma estrondosa goleada. Depois dessa, diziam eles, não haviam mais quaisquer adversários à altura das “leis econômicas naturais” e da “missão civilizatória” do Capitalismo. Por isso, insistia a imprensa esportiva, em verdade não havia sequer jogo a acontecer.
Porém, sem que praticamente ninguém percebesse, a História se encarregou de colocar frente a frente o poderoso Capitalismo contra a novel agremiação dos “malucos de vermelho”. E logo aos 17 minutos, em jogada individual de craque, o centroavante Vladi “Bolchevique” Lenin apareceu na pequena área para se aproveitar de uma domingada do zagueiro capitalista (um tal de Guerra Imperialista) e tocar pro fundo das redes. Socialismo 1 x 0. O estrondoso tento chamou a atenção de toda a redondeza, e agora que as arquibancadas do estádio já iam se enchendo, a imprensa esportiva não podia mais negar que havia sim um título em disputa, e que seu time preferido tinha do outro lado a ser batido um adversário digno de uma grande final. Porém o time do Capital, que jogava todo de branco, sentiu o gol sofrido e errava passes bobos. Aproveitando-se da confusão adversária, o Socialismo rondava a área adversária com os meias Bella “Revolução Húngara” Kun, Rosa “Spartakus” Luxemburgo e o sempre perigoso atacante Movimento Operário, levando o time do Capital a começar a apelar pra violência. As botinadas dos beques capitalistas tiraram Rosa e Kun do jogo, obrigando o técnico vermelho a substituí-los pelos imprevisíveis e pouco entrosados Leon “Peruca” Trotsky e Zé “Kulak” Stalin. Mas mesmo assim, logo a seguir a zaga do Capital voltou a falhar, e após um lance grotesco do goleiro Crise Econômica (justo ele que, diziam, nunca mais ia voltar a falhar), o Socialismo ampliou o marcador aos 29 minutos. Com dois a zero no placar o desespero tomou conta do time de branco, e o técnico do Capital (o enigmático “Sr. Sistema”) resolveu apelar pro banco de reservas. Saem o Liberalismo e a Democracia, entram os agressivos centroavantes Adolf “Te Mato” Hitler e Benito “Boçal” Mussolini. Empurrados pelos gritos da torcida dos governos francês, inglês e ianque, a nova dupla de ataque dos brancos passou por cima do Movimento Operário e começou a pressionar o miolo de zaga soviético. Porém, num contra-ataque fulminante nos minutos finais do primeiro tempo, o centroavante Exército Vermelho marcou mais um para os vermelhos. Para o espanto de muitos, após os primeiros 45 minutos de jogo o placar era Socialismo 3 x 0. Tamanho era o estrago sofrido pelo escrete do Capital que o Socialismo, que começou sem ninguém a lhe apoiar nas arquibancadas, agora tinha a China inteira e metade da Europa torcendo a seu favor.
Acuado pelo impressionante placar construído pelo adversário, o técnico do Capital decidiu no intervalo fazer mudanças radicais. Ele sacou do time sua alucinada dupla de ataque nazi-fascista e até mesmo o capitão Exploração Selvagem (pelo menos por alguns minutos, pensava ele com seus botões de ouro), substituindo-os por suas jovens promessas: John “estimular-a-demanda” Keynes, Social-“nem-tanto”-Democracia e Consumismo S.A., todos aguardando ansiosos pela oportunidade de estrear e ajudar seu time a buscar a virada. O técnico também orientou os gandulas Grande Mídia e Serviço Secreto a censurar, sabotar e dar golpes sempre que a bola sobrasse pros de vermelho (quem disse que o jogo era em campo neutro??). No entanto, a favor do Capital havia o alento de que o time adversário, embora bem à frente no placar, estava tão ou mais estropiado do que quando começara a partida. Tudo graças à violência do antijogo branco, que primeiro com as botinadas da Repressão Policial e da Perseguição Política, depois com a Devastação da Guerra em campos adversários, ocorrida nos últimos minutos da etapa inicial, conseguira exaurir e encher de contusões o escrete rubro (e isso que a imprensa esportiva dizia que a equipe do Socialismo é que era a violenta!). E se a Guerra e tudo o mais os havia deixado bem atrás no placar, ao menos o Capital lucrara enormemente com os encarniçados embates dos minutos finais do primeiro tempo, prometendo assim voltar bem mais preparado do pós-guerra do intervalo. Os de vermelho, por outro lado, que já começaram o jogo pobres e combalidos, pagaram o preço de um desgaste físico e material impressionante para construírem sua vantagem no placar. Mesmo levando isso em conta, o técnico do Capital decidiu fazer mais alterações. Mandou renomear seu time de Capitalismo para Mundo Livre Democrático, e orientou os locutores da imprensa esportiva a chamarem o adversário de Império do Mal Comunista, ou simplesmente Comunista (por que será que essa palavrinha soa tão pesada??). E pra ver se dava sorte, também aproveitou pra mudar o uniforme do seu time. Tendo descido aos vestiários de calção e camisa brancos, agora os onze Heróis da Liberdade voltavam ao gramado de calção azul estrelado e camisa com listras vermelha e branca. Já os comunistas voltaram pra etapa final com as mesmas cores e a mesma formação, com a exceção do meia Trotsky e do volante Zezé “Partisan” Tito, expurgados do time pelo capitão Tio Zé “Coveiro” Stálin (que mudou de apelido depois de concluir que “Kulak” não parecia malvado o suficiente).
Logo nos minutos iniciais da etapa complementar a mudança de estratégia do técnico “Sr. Sistema” (que mudou seu próprio apelido para “Tio Sam”) começou a equilibrar o jogo. O carisma e o apelo irresistível dos laterais Consumismo e Hollywood começavam aos poucos a ganhar a torcida, enquanto os gandulas iam cumprindo com primor seu serviço de fraudes eleitorais e golpes, primeiro na Itália, depois na Grécia, na Coréia, na Indochina, e mais tarde na África e no delicado campo de defesa do Capital (mais conhecido como América Latina). Mesmo assim o placar seguia inalterado, quando aos 14 do segundo tempo (ou como os gringos contam, aos 59 minutos de jogo), em veloz triangulação de Fidel, Che e Raúl, a zaga capitalista foi pega de surpresa novamente e a bola foi morrer no fundo das redes. Socialismo 4 x 0! Agonia do Capital, festa da cada vez mais numerosa torcida vermelha. Doidos de paranóia, os beques burgueses (que já vinham distribuindo botinadas na Argélia, no Congo e no Vietnã), decidiram reforçar a defesa com mais repressão (ou nas palavras do locutor, “segurança democrática”) no Oriente Médio, na África do apartheid do Sul, nas colônias portuguesas e, claro, na América Latina. Enquanto isso, escondidos debaixo das arquibancadas, os cartolas já planejavam uma “virada de mesa” (ou como dizem por aí, Guerra Nuclear!).
No lado socialista porém, apesar da vantagem no placar e da vitória quase certa (precisamente como previra aquele outrora desacreditado comentarista alemão barbudo), os jogadores batiam cabeça e não chegavam a um consenso sobre o que fazer dali em diante. Che Guevara e Mao Tse-Tung queriam seguir o exemplo de Ho Chi Mihn e partir pra cima dos capitalistas, mas Kruschev e Breznev falavam em “coexistência pacífica” (afinal, diziam eles, em time que está ganhando não se mexe), ao mesmo tempo em que davam de relho nos volantes Tcheco, Húngaro e Polaco, que insistiam em desafiar a férrea disciplina tática do Monolitismo Soviético. Já o técnico comunista, vencendo por acachapantes quatro a zero aos vinte e pouco do segundo tempo (ou sessenta e tanto para os gringos), com todos os craques no seu time e com as arquibancadas cada vez mais do lado vermelho, julgou que o jogo já estava decidido e resolveu descer pros vestiários pra tirar uma soneca.
Porém o treinador acabou dormindo no ponto e quando acordou o tempo de jogo já estava nos 89 minutos. Subindo às pressas para o gramado, ele ficou estarrecido ao descobrir que o Capital havia virado o jogo para 7 x 4! Para o horror do treinador rubro, tudo havia mudado em campo. Seus craques haviam desaparecido, substituídos por velhos lentos e pançudos que mal tocavam na bola de tão preguiçosos. Revoltada com o futebol burocrático agora jogado pelos de vermelho, a totalidade do público nas arquibancadas passara a torcer para o time do Capitalismo. O comunista não podia acreditar no que via! Enquanto dormia no ponto, seu time começara a se esfacelar em campo nos últimos minutos e passara a sofrer gols sem parar do seu arquiinimigo, tudo sem que ele sequer percebesse! Voando em campo, o time do Capital virara o jogo com gols da Tecnologia, do Ecologismo, da Contracultura, do Liberalismo e do Mercado Regulado (que entrara no lugar do Livre Mercado para, com passadas dinâmicas e ágeis, dar um drible desconcertante na lenta Economia Planificada e marcar um golaço), além de mais um tento do Consumismo e um incrível gol contra do Movimento Sindical e Operário. Até as Bandeiras da Democracia e da Liberdade, que por tanto tempo estiveram do lado do Socialismo, agora dançavam alegremente atrás do gol do escrete do Capital, comemorando a vitória iminente daquele time que até pouco tempo atrás elas tão fervorosamente torciam contra. Sem poder fazer mais substituições, o atônito técnico comunista decidiu mandar avançar no ataque a Igualdade, a única que ainda jogava alguma coisa pelos vermelhos. Mas já era tarde demais para buscar o empate e aos 46 do segundo tempo (ou melhor, aos 91 de jogo) o juiz encerrou a partida. Vitória de goleada do Capitalismo! Festa no gramado, nas arquibancadas e por toda a parte pela título do escrete do Capital. Do outro lado, ninguém parecia sequer lamentar a derrota Socialista. Até mesmo o treinador comunista pendurou o boné e decidiu se aposentar, de forma que o time socialista, que até pouco tempo desafiara o Capitalismo de igual pra igual, desaparecera por completo tão logo o juiz encerrara a partida. Extasiados com a surpreendente e esmagadora virada de seu time, a imprensa esportiva enchia a boca pra falar que “sempre soube” do resultado final, que agora sim não havia mais jogo, a História havia acabado e o Capital era campeão inconteste. Aquele comentarista esportivo, o tal do alemão barbudo, estava errado afinal de contas, diziam os especialistas no esporte. O Capitalismo era mesmo o melhor!
Porém, à medida que o tempo ia passando, as arquibancadas se esvaziavam e a poeira da retumbante festa da vitória se assentava, as pessoas foram percebendo que, embora vencera de goleada, o Capitalismo não era aquele timaço que todos imaginavam. Novos concorrentes em potencial, como a Miséria, a Criminalidade, a Desigualdade, a Xenofobia, o Terrorismo e as Crises Ambiental e Econômica pareciam querer desafiar o Capital pra uma nova partida, num jogo de selvagerias que, sob o risco de não ter a quem torcer, todos desejavam que jamais ocorresse. Em meio a esse clima de indefinição quanto ao futuro do esporte, um punhado de “malucos” decidiu se juntar para tentar refundar o time do Socialismo. Eles sabem que são poucos, que seu amadorismo de time de várzea não chega aos pés nem do poderoso e profissional time do Capital nem dos agora principais rivais deste, o Caos e a Barbárie. Sabem também que o time anterior do socialismo já está extinto de vez e que, como qualquer um que morre, continuará morto para sempre. Mas mesmo assim eles ousam fundar um novo time de vermelho, renovado no seu futebol e na confiança daquele velho comentarista alemão barbudo de que o time do Capitalismo estava longe de ser invencível. Convencidos de que o campeonato não acabou, eles sabem que o Socialismo tem o direito de disputar o jogo de volta, e vão lutar com afinco por isso, correndo por fora pra superar os favoritos e, quem sabe assim, beliscar a taça. Aprender com as falhas do primeiro jogo é o primeiro passo para voltar a exibir um futebol vistoso e reconquistar o apoio da torcida, diz o novo técnico Movimento Anti-Globalização. Perdido em meio a esse mundo de crises, continua ele, o público está ansioso por encontrar outro time digno de sua torcida, e cedo ou tarde eles vão encontrar a quem torcer. Será que o alemão barbudo estava errado mesmo?
sexta-feira, 5 de junho de 2009
Capitalismo x Socialismo – o grande jogo do século XX
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Um comentário:
O negócio é saber se a torcida vai ligar para esse novo time se formando, ou se ela vai continuar a torcer pelo Capitalismo já que está tão acustumada.
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