A História e os motivos da ascensão e queda de um tipo particular de socialismo, tido tanto por seus apologéticos quanto pelo mais ferrenho anticomunismo como a única e universal maneira de se fazer socialismo, tem muito a ensinar sobre quais caminhos devem ser seguidos - e quais não devem - pelos arquitetos do socialismo do futuro.
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Nestes
dias em que se completam 25 anos da queda do Muro de Berlim, episódio histórico
que marcou o desaparecimento do socialismo da Europa e o início da maior
ofensiva mundial político-econômico-ideológia da história do capitalismo, a
ponto de o senso comum aceitar tal sistema como o único possível, surge o momento ideal para todos que ainda
defendem o socialismo como forma de organização social distinta e oposta ao
capitalismo se perguntarem e debaterem junto ao povo as resposta às perguntas
que, por mais de duas décadas, temos vergonhosamente evitado de enfrentar: o
que deu errado? Até que ponto essa derrota histórica foi provocada por decisões
das pessoas, e não pelas terríveis condições impostas pela realidade nos países
onde se procurou construir o socialismo? E quais os caminhos que futuras
experiências socialistas devem ou não seguir para que não se repitam os erros
do passado?
A
resposta adequada a essas perguntas torna-se imprescindível numa tenebrosa
conjuntura interacional de persistência de crise capitalista econômica e
ambiental, que promete aprofundar ainda mais o ciclo de retrocesso social
imposto ao povo trabalhador do mundo inteiro desde 1989, alimentando degenerações
como a fascistização das sociedades e o crescimento do fundamentalismo
religioso, aproximando a Humanidade da barbárie que, como Rosa Luxemburgo
“profetizou”, seria a única alternativa possível ao socialismo. A busca por
tais respostas se torna ainda mais urgente quando observa-se o início do
declínio da tímida experiência dos governos progressistas da América Latina, em
parte por conta da “crise de direção” de alguns desses processos, resultado
direto da visível falta de clareza de um horizonte estratégico e de quais rumos
seguir na construção do socialismo.
Analisando as teorias do socialismo
Para
que se respondam tais perguntas, que dizem respeito não só à sobrevivência do
projeto socialista mas de toda a Humanidade, é necessário antes de tudo
analisar as premissas teóricas nas quais uma geração inteira de revolucionários
de todo o mundo se basearam para
construir do socialismo até os dias atuais, a seguir analisando experiências
socialistas do passado e do presente, e depois analisar como tais ideias se
comportaram na prática, e quais foram seus resultados concretos.
A
Revolução Russa de Outubro de 1917 marcou o início do projeto socialista como
uma forma própria de organização da sociedade, distinta do capitalismo,
iniciando um ciclo de ascenso nas lutas que só se encerraria no fatídico 1989.
Neste período do século vinte, o século socialista, o capitalismo se viu
seriamente ameaçado por um antagonista capaz de representar uma alternativa
visível e concreta à sociedade de exploração, produção para lucro, competição e
individualismo sem limites da velha sociedade, de tal forma que nesse período
da História o mundo se viu basicamente dividido, política, econômica e
ideologicamente, entre o capitalismo e um sistema social inspirado no
pensamento de um homem: Karl Marx.
Com
a decisivo apoio de seu colaborador e amigo, Friedrich Engels, Marx, o fundador
do socialismo científico, dedicou sua vida à militância teórica e prática
visando superar as graves injustiças sociais trazidas pelo capitalismo
nascente, sintetizando todo o conhecimento de sua época em um método completo
de análise da realidade chamado materialismo histórico dialético. Deste método,
Marx extraiu valiosas conclusões: a primeira delas é que o capitalismo gera sem
cessar as condições de sua própria superação. Tal sistema, ao se basear no
livre mercado, na concorrência de capitais e na exploração do trabalho
assalariado, depende do constante crescimento econômico para sobreviver.
Crescendo sem parar o capitalismo impõe-se por toda parte, esfarelando a
economia, as relações sociais, as crenças e superstições das antigas sociedades
feudais, camponesas e pré-industriais, gerando um mundo à sua imagem e
semelhança: um mundo dominado por um mercado cada vez mais globalizado, onde o
consumismo, a competição, o individualismo e o utilitarismo sem limites são os
dogmas da nova religião que aspira a condição de “lei geral” eterna, imutável e
aceita por todos.
Porém,
com o tempo o crescimento econômico no capitalismo tende inevitavelmente a
desacelerar (a chamada “tendência decrescente da taxa de lucro”), gerando uma
crise de acumulação de capital. Neste caminho, o sistema se afunda em crises
produzidas por uma de suas contradições fundamentais: o capitalismo só cresce
aumentando a exploração e achatando os salários, mas ao fazê-lo reduz o poder
aquisitivo dos trabalhadores e achata o consumo, provocando as chamadas crises
de superprodução. Afundando-se em crises cíclicas, agravadas pelo potencial
explosivo das velozes (e nada planejadas) transformações que a ordem do capital
impõe constantemente, tal sistema gera uma tensão social crescente à medida que
produz miséria na mesma medida em que gera riqueza.
Tais
constatações, contidas na grande obra de Marx, O Capital, uma densa análise do
processo de formação do capitalismo, dos seus limites e fraquezas, encontra-se
espantosamente atual, mesmo tendo sido escrito há mais de 150 anos! Igualmente
atual, a obra Manifesto
Comunista, escrito com conjunto por Marx e Engels, sintetiza grande
parte das conclusões da análise materialista dialética da realidade do século
XIX num livreto de agitação e propaganda focado na principal das contradições
do capitalismo, aquela capaz de destruí-lo: a classe trabalhadora, em especial
o operariado, classe que, por sua condição miserável de exploração e de subordinação
dentro da ordem capitalista, é a única capaz de realizar a “mais radical
ruptura” [01] com os valores e práticas da sociedade burguesa, construindo uma
nova sociedade na qual seriam abolidas não somente a propriedade privada dos
meios de produção e as distinções de classes, como também as próprias relações
de mercado como um todo (compra e venda), numa sociedade de “produtores
associados” que se auto-governam pelo planejamento do uso racional dos
recursos, sociedade que Marx chamou de comunismo.
Porém,
nem Marx nem Engels acreditavam que o comunismo seria alcançado de um golpe só.
A fim de “revolucionar o modo de produção” [01] vigente, elaboraram no Manifesto
um programa político que, ainda que revolucionário, estava
visivelmente longe de representar toda a radicalidade de uma forma de
organização social sem Estado, sem classes sociais e sem relações de mercado. Claramente,
Marx e Engels eram contrários a uma construção ‘forçada’ do comunismo. Seu
projeto político visava, em primeiro lugar, “conduzir a classe trabalhadora à condição de classe governante”
[01]. Trata-se de um projeto ambicioso, que não pode ser realizado através de
reformas puras e simples, mas somente através de “incursões despóticas nos
direitos de propriedade e nas condições de produção capitalistas” [01]. Um
projeto que, se levado a cabo faria com que, pela primeira vez na História, uma
classe que representa a imensa maioria da população se tornasse a classe
dominante. É somente assim que se compreende como o “despotismo” inicial dessa
revolução significa a médio prazo a “vitória da batalha pela democracia” [01].
Um
vez vencida essa primeira etapa, a da revolução social, essa nova classe dominante
encontraria as condições de implantar um programa de reformas revolucionárias que, na visão
de Marx e Engels, não deveriam implantar o comunismo, mas tão somente destravar
as forças do desenvolvimento histórico a fim de que, no “curso de
desenvolvimento” natural da História, a classe trabalhadora usasse sua
“supremacia política” para “arrebatar gradativamente todo o capital da burguesia e
centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, ou seja, do
proletariado organizado como classe governante” [01]. Assim, não por decreto,
mas sim pelo desenrolar das forças históricas, as diferenças de classe aos
poucos iriam “desaparecer” e toda produção “se concentraria nas mãos dos
indivíduos associados” [01]. Daí se compreende por que qualquer pretensão de
‘engenharia social’ é estranha ao marxismo. E também se compreende porque, antes
de se alcançar um estágio de organização social como o comunismo, deve
necessariamente haver uma fase intermediária de desenvolvimento entre o
capitalismo e o comunismo, no qual características dos dois sistemas
coexistiriam, estágio este que convencionou-se chamar de socialismo.
O laboratório teórico e prático da Comuna
de Paris
Tais
ideias foram colocadas em prática de maneira espantosa ainda durante a vida de
Marx, num dos episódios mais memoráveis da História das lutas da classe
trabalhadora, a insurreição da Comuna de Paris (1871). O esfacelamento do corrupto
Império de Napoleão III após sua fragorosa derrota na guerra franco-prussiana
abriu um vácuo de poder na capital francesa, onde as massas operárias, que
haviam sido armadas para defender o país da invasão alemã, decidiram tomar o poder.
Com o apoio de camadas médias da população, a classe trabalhadora proclamou a
independência da Comuna
parisiense, expulsando os agentes do governo central, dissolvendo a polícia e
decretando uma forma de governo participativa. Os comunardos lançaram também um apelo
para que os operários e camponeses do interior da França repetissem o exemplo
parisiense, transformando o país inteiro numa federação de Comunas livres e
autônomas.
Porém,
a heroica Comuna cometeu um erro fatal: os comunardos recusaram-se a “arrebatar o capital da
burguesia”; a sede central do Banco da França foi mantida incólume, e foi com
os recursos financeiros do banco que os capitalistas franceses, ajudados pelo
‘odioso inimigo’ (o Exército prussiano) financiaram a feroz e genocida guerra
que varreu a Comuna do mapa, numa das mais brutais ações de extermínio de toda
a História da Europa. A derrota da Comuna ante o terrorismo de Estado capitalista
significou a erradicação física da vanguarda do operariado francês em tal
escala que a classe trabalhadora deste país jamais voltaria a rebelar-se contra
sua condição de subordinação ao capital.
No
entanto, os dois meses da primeira experiência de poder de classe dos trabalhadores
tiveram também um saldo positivo. Quase instintivamente, em um espaço hegemonizado
por rivais ideológicos da Internacional de Marx e Engels (os Blanquistas e os
Proudhonianos), os comunardos seguiram um rumo que confirmou de
maneira espetacular a ideia central do Manifesto Comunista: o potencial revolucionário da
classe trabalhadora e sua determinação em varrer todos os resquícios da velha
ordem, seguindo num “curso de desenvolvimento” natural rumo à constituição do
“proletariado como classe dominante”. Confirmou, portanto, a capacidade da
classe trabalhadora em se auto-organizar numa nova e mais avançada forma de
poder, livre dos desmandos de patrões ou generais.
Mais
do que isso, a Comuna confirmou na prática uma perspectiva quase esquecida do
marxismo, um verdadeiro tabu nos dias atuais de capitalismo neoliberal: a luta
pela destruição
do Estado (entendido como o ente governante da sociedade, formado
por um corpo profissional e hierarquizado de administradores sociais, chamado burocracia).
Luta esta que foi assumida quase espontaneamente pelos comunardos, demonstrando não somente
o potencial de tal ideia em se apoderar das massas, mas também a viabilidade desta.
No
que consistia o projeto anti-estatista da Comuna? Politicamente, a Comuna
aboliu o corpo administrativo profissional, substituindo-o pela administração
direta dos negócios públicos através dos conselheiros municipais, eleitos de forma direta e
democrática, que recebiam pelo serviço o mesmo salário de um operário e podiam
ter seu mandato revogado pelo povo a qualquer momento. E economicamente,
consistia na administração das fábricas e empresas abandonadas pelos próprios
trabalhadores, no que seria chamado de autogestão.
Nas palavras do próprio Marx, “Era este o seu verdadeiro segredo: ela [a Comuna] era essencialmente um
governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a
apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a
emancipação econômica do trabalho [02].”
No seu prefácio da edição de 1891 da Guerra Civil na
França, Engels gravou o epíteto que se tornaria um dos mais
simbólicos tributos do marxismo ao heroísmo dos comunardos. “Olhai a Comuna de
Paris: eis a ditadura do proletariado” [03]. Mas foi além de somente render
homenagens pioneirismo do operariado parisiense, ao enfatizar quais eram, nas
revoluções do futuro, as tarefas políticas a ser realizadas para garantir o
caráter irreversível da revolução: “A Comuna teve de reconhecer que a
classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar a administrar
com a velha máquina de Estado; que esta classe operária, para não perder de
novo a sua própria dominação, tinha, por um lado, de eliminar a velha
maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, e por outro, de
precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar
estes, sem qualquer excepção, revogáveis a todo o momento.” [03]. Trata-se de
uma séria – e como veremos adiante, infelizmente esquecida – advertência de
Engels à classe trabalhadora para esta “não perder sua dominação” recém
conquistada a um novo segmento social que, nas experiências socialistas do século
vinte, ganharia uma importância jamais vista: a burocracia.
Com
tudo isso, fica evidente a distinção entre o anti-estatismo dos marxistas e dos
(neo)liberais: os últimos defendem, em tese, que o Estado seja substituído pelo
‘mercado’ (leia-se, os grandes monopólios capitalistas). Sua fórmula é em
benefício do capital, conduzindo inevitavelmente à mais irrestrita tirania da
‘burguesia’ sobre o ‘proletariado’. Já os marxistas querem que o Estado seja
substituído pela
administração direta da sociedade pelo povo trabalhador. Marcando
tal diferença, Marx fez questão de ironizar a burguesia afirmando que “a Comuna
fez uma
realidade [a reivindicação] das revoluções burguesas - governo barato -
destruindo as duas maiores fontes de despesa: o exército permanente e o
funcionalismo de Estado” [02].
Lenin e o socialismo
Vladimir
Lenin, o pai da Revolução Russa, um dos maiores pensadores do materialismo
histórico dialético do século vinte, enriqueceu e aprofundou o marxismo tanto
em sua teoria quanto na prática. Em seu livro O Estado e a Revolução, escrito nos
meados decisivos de 1917, o líder bolchevique resgata o cerne do pensamento de
Marx e Engels das mãos dos social-democratas (àquela altura já vendidos para a
burguesia), destroçando de forma contundente
a tentativa destes em ‘canonizar’ um Marx reformista, dócil aos
interesses do capital. Mas Lenin fez mais do que isso. Resgatou também a essência
anti-estatista do marxismo: “A substituição do Estado burguês pelo
Estado proletário não é possível sem uma revolução violenta [e a seguir] a abolição do Estado
proletário, isto é, a abolição de todo o qualquer Estado, só é possível pelo
‘definhamento’ ” [04].
Sendo
o Estado um “produto do antagonismo irreconciliável de classes”, que serviria
unicamente para “garantir a dominação de uma classe sobre as outras” [04], a
abolição do antagonismo entre classes resultante da revolução socialista seria condição necessária
para tornar o Estado supérfluo, abrindo assim a perspectiva histórica que
conduziria tal instituição ao “museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e
do machado de bronze” [04]. Assim, Lenin deixa ainda mais clara a visão
anti-estatista do marxismo, já visível desde os escritos do Manifesto:
o Estado só pode “definhar” depois de se abolirem todos os antagonismos de
classe. Isso explica por que o ‘anti-estatismo’ neoliberal (na verdade, a
redução do Estado a um mínimo capaz de
garantir os lucros dos capitalistas, podendo a qualquer momento se tornar
‘máximo’ para salvá-los de suas crises) só pode se traduzir nos mais impiedosos
retrocessos ao povo trabalhador. Diferencia-se também do anti-estatismo
anarquista, que ao enxergar a tarefa de abolição do Estado sob um prisma voluntarista
(isto é, para fazê-lo basta querer), é incapaz de compreender como tal
transformação só pode se dar no desenrolar de um processo histórico complexo, em
grande parte independente da vontade de indivíduos, ignorando também os
impeditivos de ordem prática (organizativos, estruturais) a tal tarefa.
Eis
a opinião dos fundadores do chamado marxismo-leninismo sobre a orientação que a revolução
socialista deveria tomar para cumprir seu objetivo histórico de emancipar a
classe trabalhadora (e por conseguinte, toda a Humanidade) da “exploração do
homem pelo homem”. Resta analisar como tal teoria se comportou na prática, e o
que essa prática, confrontada com a teoria, tem a ensinar sobre as razões da
derrota do socialismo no século vinte.
A Revolução Russa: nascimento do
socialismo ‘de tipo soviético’
É
impossível entender corretamente a experiência do socialismo no século vinte sem
antes conhecer como se deu o surgimento e desaparecimento do primeiro Estado
socialista a História. Foi no antigo Império Russo, bastião do conservadorismo
na Europa, esfacelado sob o peso de suas contradições internas aguçadas pela
Primeira Guerra Mundial (1914-18), que a organização política revolucionária do
Partido Bolchevique de Lenin veio de encontro à força revolucionária do
operariado para constituir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
que por conta de seu pioneirismo, converteu-se aos olhos de revolucionários de
todo o planeta como o paradigma de socialismo.
No
entanto, esse formato de socialismo nascido com a Revolução Russa, tido por
muitos como o
caminho para a construção da sociedade sem exploradores nem
explorados, o modelo
único a ser copiado mecanicamente por todas as futuras revoluções,
não podia deixar de ser ele próprio produto de uma conjuntura específica, acima
das pretensões de seus idealizadores e de quaisquer idealizações vãs. Era,
acima de tudo, uma experiência real, inserida num contexto histórico
particular, que produziu uma forma particular de socialismo, forma esta que se
adaptava tão somente às condições objetivas em que nasceu.
E
quais eram as condições objetivas em que se deu esse socialismo, grosso modo,
esse sistema (ou modo de produção) ‘de tipo soviético’?
Conjuntura e desafios imediatos da
Revolução Russa
De
imediato, a Revolução Russa de 1917 veio cumprir algumas predições de Marx, ao
mesmo tempo que contrariou outras. Se por um lado o processo político em que se
deu o nascimento da URSS confirmou mais uma vez o potencial revolucionário da
classe trabalhadora, por outro a eclosão de tal revolução na atrasada e
semifeudal Rússia inverteu a lógica da “quebra das correntes”; a revolução
socialista deveria ocorrer primeiro nos países mais avançados, onde as
contradições do capitalismo eram mais agudas e onde a classe trabalhadora era
mais desenvolvida e coesa, e não nos países da periferia do sistema (caso da
Rússia imperial), onde o operariado era uma minoria ínfima e nem de longe haviam
as condições materiais para uma sociedade de tipo superior prosperar. Pior, a
derrota da onda de revoluções operárias nos países mais avançados da Europa
ocidental nos anos de 1918-19 conduziu a Revolução Russa ao total isolamento e
a uma traumatizante guerra na qual exércitos invasores de dezenas de países,
atacando por todas as direções, procuraram sem sucesso destruir o Estado
soviético através da mais pura barbárie. Dessa maneira, consolidado o governo
revolucionário, os bolcheviques viram-se diante de uma conjuntura das mais difíceis
à sobrevivência do socialismo. Após a morte de Lenin, os dirigentes soviéticos
idealizaram um plano que, ao seu ver, respondia aos desafios colocados por um
viés socialista.
Sistema econômico soviético
Materialmente,
a economia soviética foi reorganizada em um modelo de total estatização dos meios de produção.
Era a chamada economia
planificada, que em oposição à economia de mercado, regia-se pela
administração estatal centralizada, via planos econômicos determinativos, nos quais o Estado determinava
a cada empresa do país o que produzir, em que quantidade e de que maneira,
definindo também de quem comprar as matérias primas, a quem e a que preço
vender o produto final. Tratava-se de um modelo econômico capaz de enfrentar
satisfatoriamente os desafios então colocados: em resposta à necessidade
urgente de reconstruir um país arrasado pela guerra e de promover sua
industrialização acelerada (urgente inclusive para permitir a sobrevivência da
revolução frente a futuras agressões imperialistas), a racionalização do uso
dos recursos através do planejamento estatal; em resposta à escassez de recursos
técnicos (por exemplo, a falta de mão de obra qualificada, engenheiros,
administradores, etc.), a total centralização da gestão econômica através de
planos determinativos. Além do mais, tal modelo econômico ia de encontro ao
projeto alegadamente marxista de se “abolir as relações de mercado”,
administrando toda a economia da nação, nas palavras do líder bolchevique
Bukharin, como “uma grande empresa do povo”.
Sistema político soviético
Politicamente, o total isolamento dos comunistas russos tanto no plano externo (a
persistência do cerco do imperialismo, com sua constante ameaça de nova guerra)
quanto no interno (todos os demais partidos socialistas da Rússia, em especial
os partidos camponeses, maioria da população, haviam se aliado à
contra-revolução), levaria o Estado soviético a se constituir num sistema de
governo de partido
único, onde nenhuma forma de oposição ao governo era tolerada. A repressão
às forças reacionárias, levada a cabo nos primeiros anos da era soviética por
uma “comissão extraordinária” (Cheka), se consolidaria com o passar do tempo como
prática de “segurança do Estado” (indo da NKVD de Stálin à famosa KGB),
institucionalizando uma luta perpétua contra o fantasma da ‘contra-revolução
interna’, de forma que direitos essenciais como a liberdade de expressão, o
acesso à informação e o direito de ir e vir sofreram restrições severas por
toda a história da União Soviética. Consolidou-se, assim, uma superestrutura
político-jurídico-ideológica condizente com a base material verticalizada e
altamente centralizada da economia planificada determinativa.
Assim
desenvolveu-se o paradigma econômico e político do socialismo, o socialismo ‘de
tipo soviético’, que se espalharia por todo o mundo nas décadas seguintes.
Primeiro no leste europeu, levado à força pelas tropas do Exército Vermelho,
onde se consolidaria quase na totalidade dos países da região. E depois servindo
de modelo para a construção do socialismo na China maoista (especificamente, em
seu reduzido espaço urbano), na Coreia, e nas revoluções cubana e vietnamita. A
despeito de nuances nos diferentes países e contextos em que este sistema se
implantou (principalmente na organização do meio rural), e mesmo com as
reformas realizadas no interior da URSS pelos governos de Kruchov e Brezhnev, o
tipo soviético de socialismo manteria sua essência praticamente inalterada no
mundo todo até meados da década de 1980, quando Mikhail Gorbatchov assumiu o
poder soviético e iniciou uma série de ‘reformas’ que levariam tal sistema a
uma crise generalizada, culminando com seu quase total desaparecimento.
Problemas econômicos do socialismo ‘de
tipo soviético’
Apesar
dos notáveis avanços na industrialização da URSS nos anos 1930 e da rápida
recuperação econômica que este sistema apresentou no pós-guerra no leste
europeu como um todo, o sistema soviético de socialismo começou a dar seus
primeiros sinais de esgotamento já na década de 1960. A economia planificada
determinativa mostrou-se eficiente para criar indústrias onde antes não
existiam e aumentar quantitativamente a produção, mas com o passar do
tempo se mostrou incapaz de manter e modernizar o parque fabril que criou, além
de sofrer uma persistente dificuldade em crescer qualitativamente. Na década de 1970
já era claro que o sistema ‘perdia terreno’ no campo econômico para as
potências capitalistas, notadamente em quesitos cruciais como o desenvolvimento
tecnológico e a capacidade em incrementar sua produtividade. Paradoxalmente, a
tecnologia sempre foi o ‘calcanhar de Aquiles’ do tipo soviético de socialismo.
Por muito tempo a dificuldade deste sistema em desenvolver por sua conta
inovações técnicas (e principalmente, a demora em aplicar tais inovações na
indústria, excessiva se comparada com as potências capitalistas) foi compensada
com a importação em larga escala de tecnologia do ocidente (plantas fabris
completas chegaram a ser compradas do mundo capitalista, como a fábrica de
automóveis de Tolyatti, URSS, montada pela FIAT nos anos 1970). Mesmo o
programa espacial da URSS, que conferiu ao país o pioneirismo nas viagens
interplanetárias, recebeu uma importante ‘ajuda’ através da transferência de
tecnologia da derrotada Alemanha, país pioneiro na fabricação de foguetes.
Setores menos prioritários do que o programa espacial ou o militar demonstraram
dificuldades crescentes em seguir inovando, e o fosso tecnológico existente
entre os países de sistema soviético e os capitalistas avançados no campo econômico
em geral alargou-se brutalmente pela lentidão deste sistema em adentrar na nova
etapa da revolução tecnológica, a da informática, iniciada nos anos 1970-80.
Como resultado, o sistema soviético entrou em um ciclo de desaceleração na
produtividade do trabalho que alcançou níveis insustentáveis já no início da
década de 1980, demandando taxas de investimento cada vez maiores para manter
um ritmo de crescimento econômico cada vez menor, resultando na compressão do
consumo em geral, seja de produtos supérfluos ou essenciais. A indústria de
bens de consumo no sistema soviético, que historicamente recebera grau mínimo
de prioridade por conta da necessidade de acelerar a industrialização nos
países em que se implantou, teve um significativo aumento quantitativo na URSS nos anos 1970,
mas foi incapaz de crescer qualitativamente. Em meados da década seguinte, o
próprio governo soviético reconhecia que eram raros os produtos de sua
indústria que possuíam qualidade comparável ao dos países capitalistas mais
avançados.
Ao
‘abolir’ as relações de mercado, o modo de produção soviético criou também
outros dilemas aos quais não foi capaz de responder satisfatoriamente. Não se
criou uma forma alternativa ao jogo da ‘oferta e procura’ capaz de avaliar
corretamente as necessidades e interesses da população. Incapaz de determinar
objetivamente como, o quanto e de que forma as pessoas queriam que suas
necessidades de bens e serviços fossem atendidas, o Plano determinativo
incorria em erros sistemáticos, agravados pela interferência política nos
critérios de planejamento, pretensamente ‘objetivos’ e ‘racionais’, levando os
países desse sistema na Europa a um superdesenvolvimento artificial dos seus
setores de indústria de base (aço, cimento, carvão, petróleo e máquinas) ao
mesmo tempo em que atrofiaram suas indústrias de bens de consumo e seus setores
de serviços, agravando o problema do abastecimento no coração industrial do
mundo socialista. O resultado disso tudo era a constante escassez de bens de
consumo, sobra de artigos que ninguém se interessava em comprar, compradores
‘fazendo filas’ intermináveis e inclusive crises de desabastecimento (como as
que levaram a diversas e abruptas quedas de governos na Polônia), problemas que
foram uma constante em todos os países do sistema soviético e em todas as
épocas deste sistema, revelando a ‘ponta do iceberg’ de um modo de produção que
entrava em crise sistêmica.
Nem
mesmo o pesado fardo da corrida armamentista pode ser invocado como ‘desculpa’
aos problemas econômicos do sistema soviético, pois mesmo em países deste
sistema onde os gastos militares não eram impactantes, como a Tchecoslováquia e
a Alemanha Oriental (por sinal, os dois únicos do leste europeu já
industrializados na ocasião da chegada do socialismo), o atraso tecnológico, a
má qualidade da produção, enfim sua incapacidade de seguir rivalizando em
termos materiais com o capitalismo mais avançado, tornou-se ao chegar da década
de 1980 francamente impossível de esconder.
A
raiz dos inúmeros problemas econômicos do sistema soviético encontrava-se na
excessiva centralização política e econômica deste sistema, que resultou a
longo prazo numa crescente inoperância da administração da sociedade: como poderia
ser possível gerenciar de forma racional e eficiente uma economia nacional como
a da União Soviética, controlando-se diretamente a produção e distribuição dos
mais de 90 milhões de tipos de produtos fabricados no país? Como se administrar
centralmente um plano determinativo tão abrangente e detalhado, que estabelecia
metas para todos os ramos de atividades da nação, desde a quantidade de aço a ser
produzida numa siderúrgica até o número de sessões que cada advogado deveria
participar?
Como
resultado de sua própria ineficiência econômica, o modo de produção soviético acabou
superado pelos países capitalistas mais avançados até desabar sob o peso de
suas próprias contradições, que no entanto estavam longe de ser meramente
econômicas.
Base autoritária, superestrutura
autoritária: uma crítica ao socialismo ‘de tipo soviético’
O modo
de produção soviético, ao se erguer sobre uma base material autoritária,
ineficiente e estática, só pôde ver refletir tal base (em maior ou menor grau,
de acordo com o país e com a conjuntura) numa superestrutura
político-jurídico-ideológica igualmente autoritária, pelo simples fato de que
centralizar a totalidade da base material de uma nação nas mãos de um único
ente (o Estado) torna impossível a administração popular e democrática desta
base por uma cabal e incontornável questão de escala. Vê-se, assim, por que a
crítica trotskista ao sistema soviético incorre num erro fundamental ao apostar
na ilusória aspiração de ‘devolver ao controle operário’, ou ‘democratizar’, um
sistema que por sua própria base material nunca foi nem jamais poderá ser
‘democrático’ ou ‘dos operários’.
O
resultado natural da super-estatização e da centralização excessiva do modo de
produção soviético só poderia mesmo ser um sistema com viés arbitrário e
verticalista, cuja expressão política foi o sistema de partido único,
forma que se mostrou incapaz de se legitimar perante as massas como meio de
expressá-las politicamente. Tal forma provou também ser o mais fértil dos
terrenos para proliferar toda sorte de oportunismos e carreirismos no meio
político dos países ‘soviéticos’, que ficou perfeitamente descrito na
pragmática máxima do ‘coronel’ baiano Antonio Carlos Magalhães: “sou
capitalista porque vivo num país capitalista. Se vivesse num país socialista,
seria um bom comunista”. O engessamento de uma base material lenta, com tendências
à estagnação (portanto, anti-dialética) engendrou uma sociedade à sua
maneira conservadora
(atestada pela dificuldade dos países ‘soviéticos’ em enfrentar pautas como a
questão ecológica e o combate à homofobia), levando ali a lógica do ‘discurso politicamente
correto’ aos limites da hipocrisia. Com seu modo de pensar limitado à linha do
partido único, a sociedade no socialismo de tipo soviético viu-se calada em uma
‘falsa unanimidade’, que tão logo encontrou espaço livre para se expressar,
explodiu em ondas de protesto e descontentamento que de tal maneira
surpreenderam os dirigentes e os apologéticos deste sistema, que pode-se dizer
que os primeiros foram vítimas de sua própria censura, e os últimos, de seu
próprio discurso oficialesco...
No
entanto, o mais trágico de tudo foi que tal base-superestrutura essencialmente
autoritária, com sua expressão política em termos de censura, de uma retórica
‘oficial’ e de seu amoldamento forçado do pensar e do agir das pessoas e do
povo em geral fez com que o modo de produção soviético incorresse no maior dos
seus fracassos, a saber, o desestímulo ao pleno desenvolvimento da maior das
potencialidades humanas, a de seu potencial criativo e criador.
Cristalização do poder da burocracia, um
‘segmento de classe dominante com vocação suicida’
Diferente
de simplificar ou mesmo racionalizar a administração da sociedade, o socialismo
de tipo soviético acabou criando um Estado tentacular e superpoderoso, com uma
estrutura complexa e intrincada demais para poder ser gerenciada como “uma grande empresa do povo”.
Acaba, na prática, sendo gerenciada por um ‘novo’ e poderoso segmento da
sociedade, que com sua posição de mando dentro da superestrutura verticalizada, com
seu modo de vida aburguesado, seu consumo de produtos ocidentais (disponíveis
em lojas especiais, restritas a altos funcionários), se afasta das classes
trabalhadoras para tornar-se uma força praticamente com vontade própria: a classe dos
burocratas.
Estabelecida
como segmento
social dominante da sociedade de tipo soviético, a burocracia impõe
seu poder de
classe autoritário visando perpetuar na sociedade seu interesse de classe,
o interesse vinculado aos setores econômicos dominantes nesta estrutura (a
saber, as indústrias bélica e de bens de produção), que assim ganham novo
impulso para se consolidarem ainda mais como setores econômicos dominantes. Tal
interesse de
classe demonstra sua força ao estabelecer também um ‘ponto de
não-retorno’ dentro da base-superestrutura do modo de produção soviético,
agindo com coesão
de classe ao suprimir quaisquer tentativas reformadoras capazes de
solapar seu poder. Assim, Kruschev (com seus projetos de descentralização da
economia) foi primeiro destituído do poder na União Soviética, depois
‘demonizado’; e os ‘reformadores’ da Tchecoslováquia viram seus planos ser
esmagados pelos tanques do Pacto de Varsóvia...
Mas
a burocracia jamais seria uma classe dominante por assim dizer ‘completa’
porque carece do essencial, da propriedade. Não podia ser dona das fábricas e
empresas que administrava, pois pertenciam ao Estado. Assim, sendo a burocracia
uma ‘classe dominante’ como jamais se viu, complexada por sua condição sui generis
de dominante-sem-propriedade, a burocracia agiu também como jamais se viu, como
um segmento
dominante com vocação suicida. A crise econômica estrutural do
sistema acelera essa vocação, e quando soaram os gongos da mudança, então essa
burocracia, sedenta por tornar-se proprietária e classe dominante de fato, ora
faz vista grossa à crescente oposição anticomunista, ora alia-se a esta para
terminar de desmontar seu sistema, ora conduz ela própria o processo de
‘reformas’, ou se for mais inteligente, promove reformas à chinesa de forma a conservar ao
mesmo tempo o poder econômico e político, no melhor dos mundos para ex-burocratas
convertidos a respeitáveis capitalistas.
Tal
relação base-superestrutura autoritária, analisada à luz da compreensão do
poder da burocracia como segmento dominante no modo de produção soviético,
ajuda a responder uma pergunta que tanto a crítica liberal-burguesa quanto a
análise acrítica, partidária do velho sistema soviético, foram incapazes de
responder: como alguém como Gorbatchov pôde acontecer? Como um indivíduo
assumidamente anti-comunista foi capaz de assumir o poder em Moscou, ‘capital
mundial do socialismo’, e realizar de maneira totalmente impune o processo de
mudanças que aprofundaria de maneira irresponsável a crise econômica do
sistema, levando-o à sua implosão econômica, política e ideológica? Primeiro
porque este indivíduo subiu ao poder como expressão de um poder de classe específico, ‘com
vocação suicida’. E segundo porque, tendo herdado dos seus antecessores
burocratas ‘fiéis ao comunismo’ uma estrutura de poder vertical e autoritária,
tanto ele quanto Ieltsin puderam esfregar as mãos: fica fácil até demais
destruir um sistema que centraliza todo seu poder de decisão num topo
superpoderoso, bastando tomar de assalto este topo, seja através de silenciosas
e astuciosas manobras, seja à força de golpes de Estado...
Uma crítica marxista ao ‘modo de
produção soviético’
É marcante
a distinção entre as premissas teóricas contidas nos textos de Marx, Engels e
Lenin, citados no início deste artigo, e as premissas que o sistema nascido da estatização
stalinista da sociedade na URSS dos anos 1930 adotaria como sua forma particular
de se fazer socialismo (que os apologéticos desta ordem tristemente apontaram por
todo o século vinte como a forma do socialismo). Num modesto esboço a uma
crítica marxista a tal sistema, saltam aos olhos duas divergências fundamentais
entre a teoria marxista-leninista e os ‘dogmas’ adotados pelo regime dito ‘marxista-leninista’
da União Soviética de Stalin. Na primeiro delas, a total inflexão na direção do
socialismo com relação ao ‘problema do Estado’. Por que um regime que diz ter ‘suprimido
os antagonismos de classes’, e que diz seguir uma corrente de pensamento que vê
o Estado como produto desses antagonismos ‘recém superados’, ‘decide’ trilhar a
direção oposta do ‘definhamento’ do Estado, a saber, o reforço sem precedentes
dessa estrutura de dominação tão vigorosamente denunciada pelos idealizadores
do socialismo científico? Mesmo que as contingências da difícil conjuntura
exigissem um ‘reforço temporário’ do Estado de forma a levar a cabo as
necessárias “incursões despóticas nos direitos de propriedade capitalistas”, um
regime que se advogava seguidor de Marx e Lenin não poderia jamais levar ter
levado tão longe tal centralização. Tal ‘vício de origem’, ao engendrar no seio
da ‘nova ordem’ uma base material autoritária, refletida numa superestrutura igualmente
autoritária, produziria relações de classe (e principalmente, um ‘novo’ segmento
de classe dominante burocrático) que realimentariam o crescente gigantismo
estatal rumo a um caminho sem volta. O super-estado ‘gigante demais para
definhar’, premissa básica do modo de produção soviético, provaria ser a melhor
maneira de desvirtuar irremediavelmente os ideais da revolução e de fazê-la
caminhar de volta ao capitalismo.
A
segunda divergência entre a teoria marxista e a prática soviética diz respeito
ao ‘salto de etapas’ ao qual a URSS lançou-se com as estatizações generalizadas
da década de trinta. Conforme Marx e Engels deixaram claro no Manifesto,
o objetivo imediato da revolução socialista é ‘destravar’ as forças do
desenvolvimento histórico de forma que a ‘nova sociedade’ caminhe “gradativamente”
rumo à centralização dos meios de produção “nas mãos dos indivíduos associados”.
Em nenhum momento Marx, Engels ou Lenin afirmaram ser parte do projeto
comunista ‘abolir’ de imediato as relações de mercado. Mas o sistema soviético tentou
fazê-lo, inaugurando assim uma nova era no movimento revolucionário mundial, a
era do dogma do ‘anti-mercado’. Segundo esse ‘dogma’, socialismo e mercado seriam
ideias mutuamente excludentes, não sendo possível realizar qualquer tipo de
socialismo concomitante com uma economia de mercado, como se a forma de mediação
da base material (mercado ou não-mercado), e não a forma de propriedade e sua classe dominante -
capitalistas, trabalhadores ou burocratas - fosse a primeira condição
determinante do tipo do modo de produção estabelecido...
Há diversas considerações a se fazer em
tema tão polêmico. Primeiramente, não foi o capitalismo quem criou as relações
de mercado. Estas existem desde a antiguidade e não é de estranhar que sigam
existindo no socialismo (como de fato jamais deixaram de existir em quaisquer das
experiências socialistas do século vinte). Pode-se, porém, argumentar que a persistência
de relações de mercado no seio da sociedade socialista significa a persistência
de relações de concorrência nada condizentes com o ideal de construção de uma
nova e superior forma de sociedade, se chocando de frente com valores
essenciais ao socialismo, como a cooperação e a solidariedade. Pode-se
contra-argumentar que a concorrência não é um mal em si. Sua existência não irá
automaticamente converter o ser humano em um ser mesquinho e egoísta. É a
concorrência desenfreada, onde o perdedor tudo perde e o vencedor não tem
limites, resumindo, a concorrência e o mercado capitalistas, que fazem do
ser humano o que ele é no capitalismo. Se não acreditássemos nisso, teríamos de
seguir os conselhos daquela tendência minoritária dos primórdios da revolução
russa, que defendia a proibição de esportes como o futebol, por conta de sua
natureza ‘competitiva’... Um exemplo de como conciliar competição com
socialismo é o método de estímulo empregado nos primeiros tempos da
industrialização soviética, onde os setores das indústrias eram divididos em
grupos de trabalho que concorriam entre si para melhor alcançar as metas de
produção. A equipe vencedora era premiada com estímulos morais, e depois
ensinava à derrotada o segredo para melhorar.
Conclusão da crítica ao sistema
soviético
Nenhum
modo de produção pode suplantar seus rivais históricos, consolidando-se como
uma real alternativa para o futuro, sem desenvolver uma base material superior
a dos modos de produção rivais. É certo que o sistema soviético encontrou no capitalismo
um concorrente desleal, capaz de produzir ilhas artificiais de prosperidade e
de avanço no chamado Primeiro Mundo, ao mesmo tempo em que encontrava no
Terceiro Mundo a ‘válvula de escape’ adequada para ‘externalizar’ todas sua
contradições. Mas o veredito da História não podia ser mais brutal: o sistema
soviético perdeu para si mesmo, tendo de encarar sua ruína, em primeiro lugar,
por conta das próprias contradições internas à sua lógica. Engessado por uma
teia administrativa gigantesca demais para ser desemaranhada, lento demais para
responder a um mundo sempre dinâmico, o Estado de tipo soviético desabou sob o
peso excessivo que criou para si mesmo. Fracassou em suas metas principais,
inclusive (ironicamente) na mais ambiciosa delas, a de abolir as relações
de mercado, pois em todos os países
desse sistema, até mesmo na Albânia de Hohxa ou na Coreia do Norte da
‘dinastia’ Kim a venda de produtos e serviços à população jamais deixou de existir,
só que em um ‘mercado’ piorado, onde os compradores (a população) não possuíam
nem ao menos o tosco e limitado mecanismo da ‘oferta e procura’ para fazerem
valer suas necessidades e interesses!
Porque
sua natureza estatizante e ultra-centralizadora desemboca por um lado numa base
econômica excessivamente rígida, que tende à estagnação por sua incapacidade de
se moldar a uma realidade em constante movimento, e por outro resulta numa
superestrutura político-jurídico-ideológica verticalista, de cima para baixo,
onde a censura, a hipocrisia oficial e o secretismo são a regra (com todas suas
nefastas consequências), a auto-administração democrática desta forma de
sociedade se torna impossível. Foi esta a derrota que levou o socialismo “de
tipo soviético” a fracassar no mundo todo, de tal forma que só restaram dois
caminhos aos regimes sobreviventes ao colapso de 1989-91: ‘vegetar’ numa
estagnação interminável (Cuba e Coreia do Norte), ou iniciar uma lenta e
tumultuada marcha na direção do capitalismo (China e Vietnã). Compreende-se
assim por que a ‘falta de firmeza ideológica’ ou a ‘traição’ pura e simples
representam tentativas ingênuas de se explicar porque primeiro a Iugoslávia em
1950 (com seu socialismo de autogestão), depois a Hungria em 1956 (com seu
socialismo de mercado totalmente estatal), depois China e Vietnã a partir dos
anos 1980-90 (com seus sistemas mistos) seguiram caminhos que passavam pela
economia de mercado e se afastavam do caminho de uma forma de socialismo ineficiente,
definhante e condenada à bancarrota.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
[01]
MARX, ENGELS. Manifesto
Comunista. Paz e Terra, 6ª Ed., 2000
[02]
MARX. A Guerra Civil na França.
Avante. Publicação autorizada na página www.marxists.org
[03]
ENGELS. Introdução à edição de 1891 d’A
Guerra Civil na França. Avante. Publicação autorizada na página www.marxists.org
[04]
LENIN. O Estado e
a Revolução. Expressão Popular, 1ª Ed., 2007
Um comentário:
Que texto claro e sucinto. Parabéns! Deixo a sugestão de uma continuação que comparasse o contexto e a estruturação do socialismo cubano com o da URSS. Aquele seguiu a cartilha soviética ou soube se diferenciar? Abraço.
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